17.8.08

Matrioschka

Ela não tinha bem uma personalidade; tinha várias, imbricadas como matrioschkas mas desordenadas, assíncronas, caóticas, como se por ali tivesse passado um tsunami de física quântica, como se o Carlos Castañeda lhe tivesse dado peyotl a fumar desde miúda, como se uma explosão atómica tivesse fundido cada uma das peças por que era constituída, deformando-as por completo mas só por dentro e permitindo às maiores caber dentro das mais pequenas, por exemplo.

Era uma teaser, allumeuse, provocadora. Quando a conheci já havia muito tinha esquecido como resistir às tentações do género, e divertia-me a espicaçá-la - jogo pelo qual me deixava por vezes, forçoso é reconhecer, levar.

A verdade é que gostava dela, do seu sorriso desarmante, da facilidade com que passava de uma personalidade para outra, da impossibilidade de a classificar, da incerteza em que ela, até ao fim, me manteve: terá percebido que era um jogo? Ainda hoje, tantos anos depois, não sei.

Gostava das fotografias que fazia, atrás das quais reconhecia uma sensibilidade exarcebada (e, confesso, me faziam perguntar-me se atrás dessa sensibilidade haveria uma sensualidade igual); tinha com as formas a preocupação que eu tinha com a luz, quando me dava ao trabalho de fotografar. Vi-a duas ou três vezes, nas margens do Tejo, onde, dizia-me, ficava a olhar para o tempo até ele se materializar e ficar sólido e começar a derreter como um gelado do Santini, em gotas espessas de natas verdadeiras, pré-BMI.

Falei-lhe na luz, na luz da Nova Iorque do Leonard Cohen que cai nos cabelos da Suzanne como mel (por vezes, parecia-me que ela se sentia injustiçada por não ser a Suzanne), no mar, e na minha falta de paciência; falei-lhe de tudo e mais alguma coisa mas não sei, não sei de todo, se ela ouvia o que eu lhe dizia. Espero que não.

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