21.10.08

Culto

Se há coisa que me fascina é o culto da desgraça. Sempre fiquei hipnotizado, por exemplo, pelas pessoas a quem se pergunta "Como está?" quando se encontram na rua e se põem a desenrolar uma lista de maleitas sem fim e sem fins à vista.

Hoje fui a uma padaria perto de minha casa onde só havia duas pessoas, para além de mim: a empregada e uma cliente. Contrariamente ao que é habitual, aquela (pouco menos de trinta anos, e pouco menos pelos nos braços do que eu - tenho poucos, bem sei, mas mesmo assim ainda tenho alguns...) explicava à cliente que era muito forte, a tal ponto que ia trabalhar mesmo com 40º de febre. Tomava um - segue-se o nome de uma combinação de comprimidos que não retive - e, presto, aí estava, pronta para o que desse e viesse. A cliente acenava a cabeça, genuinamente interessada.

Eu estava espantado: uma senhora que não sofre de maleitas e tem uma auditora interessada não é frequente, nos meios popularuchos que frequento.

Até que percebi; assim que acabou a saga da febre, a jovem mostrou um dedo e disse:
- Mas alto lá. Este dedo não dobra. Ora veja: não dobra - e fazia força naquele dedo com os da outra mão. - Fui operada três vezes em menos de seis meses. Na primeira o médico enganou-se; na segunda, acordei a meio da operação; na terceira vim de gatas até ao quarto andar, que era onde estava o meu quarto. E agora estou a ficar careca: entre a primeira operação e a segunda foi um mês, quase dois. E entre a segunda e a terceira foram três. E a anestesia... e... e...

Aquilo continuava, e continuava numa ritournelle sem fim, mas deixei de ouvir. A cliente acabou por se ir embora e entra nova cliente.
- A Senhora não-sei-quantas não está? Já não a vejo há dois dias. Está de férias?
- Ela não está - responde a nossa intrépida empregada. - Mas não é de férias: está a tomar conta da irmã que adoeceu, veja lá. No outro dia... depois chamou o médico... e depois veja lá... e agora não pode andar... e dói-lhe isto... e aquilo... e... e...

Tive que me vir embora. Mas acho que quem tiver uma perna partida ou, mesmo, vá lá, uma crise grave de depressão deve ir àquela padaria. Sai de lá curado.

4 comentários:

  1. Era bom que fosse só nessa padaria, Luís, mas infelizmente é o pão nosso de cada dia neste país de hipocondríacos. Os portugueses ADORAM falar de desgraças.

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  2. Anónimo23:28

    Como diz a Ana, acontece em todo o lado, Luís. Até já os amigos estão contaminados. Como se não bastasse, estas conversas sobre doenças provocam-me tonturas, genuínas tonturas. Assim que o tema emerge, aí me agarro eu a uma parede ou a um sofá, a ver se me aguento… É um problema. Talvez, tal como há comprimidos contra o enjoo, também haja comprimidos contra conversas que provocam tonturas. :-)

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  3. Anónimo23:44

    Luís, não sei se apanhou o meu nome completo no comentário anterior: sou uma anónima um pouco despeitada que não está a aprender espanhol só na Hola!
    Acrescento à identificação este despeitado :-( .

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  4. Cara Anónima um Pouco Despeitada que não Está a Aprender Espanhol só na Hola,

    Obrigado pelo seu comentário. Devo dizer-lhe que considero a Hola uma óptima revista - melhor que ela, só a Cosmopolitan, "Cosmo" para oa habituados (ou viciados, como eu).

    A Hola tem uns artigos muitos interessantes - infelizmente, as fotografias são, em geral péssimas. Já na Cosmo isso não se passa: os artigos são apaixonantes - literalmente apaixonantes - e as fotografias feitas por profissionais.

    Quanto às tonturas: experimente, quando estiver com tonturas, fazer uma tontice, ou duas. Vai ver que passa, é remédio santo, já a minha Margarida o dizia. Sobretudo se estiver agarrada ao sofá, ou à parede.

    Volte sempre, querida despeitada-etc. Prometo-lhe que vou tentar reorientar as conversas deste pobre blog, coitado dele, pobre de mim.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.