Caro Tomás Vasques,
Há quarenta anos eu ia à Doca do Espanhol esperar o meu Pai, quando ele chegava de viagem. Lembro-me especialmente de uma das vezes, em que a chegada estava prevista para as três ou quatro da manhã e a minha Mãe acedeu a levar-me com ela. Morávamos na Parede, e ainda vejo o trajecto pela Marginal: quando guiava, a minha Mãe levava uma mão no volante e a outra na buzina, e o facto de serem três da manhã não era suficiente para a fazer mudar de hábitos.
Naquela altura os navios tinham sempre as mesmas tripulações; quando chegámos a Alcântara eu conhecia as outras senhoras que lá estavam (eram poucas, porque muitos dos tripulantes vinham de fora de Lisboa e poucos tinham carro). Fiquei orgulhoso, porque era a única criança. Como de costume, os atrasos e as mudanças de lugar da última da hora fizeram-me assistir ao meu primeiro nascer do sol fora de casa. O navio, um rebocador de alto mar chamado Cintra acabou por chegar. Creio que o meu gosto pelas manobras de navios vem daí: desde miúdo que as vejo, que oiço os comentários a respeito delas e - sobretudo - que estão ligadas a sentimentos muito fortes. Gostava de ver o meu Pai na proa (ou na ponte, quando ia de capitão); de entrar a bordo, de receber o beijo rápido que nos dava e de o ouvir dizer: "esperem que vou organizar a estadia"; de o ver receber as autoridades, dar instruções ao contramestre, preparar a roupa e o saco de roupa suja, objecto que sempre me fascinou; de adivinhar os presentes que ele trazia; dos cheiros: os do navio, os do porto. Gostava, sobretudo, do sentimento de camaradagem que via naquelas pessoas e que era quase tão forte como o que as ligava à família.
Como disse no seu post, nessa altura as docas fervilhavam: estivadores a chegar, os guindastes a porem-se em movimento, os gritos dos portalós (sempre gostei de os ouvir; "Vira!" "Arreia!" "Vira um pouco!" Arreia tudo!"), os palavrões, os camiões a posicionarem-se... Sempre estive ligado aos portos, e eles sempre foram, por excelência, o lugar do meu imaginário.
Mais tarde, já adulto, ia para a Doca do Espanhol tirar fotografias - ainda tenho um bom monte delas (deixo-lhe duas ou três). Sabia que aquele mundo estava a terminar, mas era o meu mundo, o mundo no qual eu crescera e o que conhecia (o meu Pai sempre esteve ligado à marinha mercante, ou à navegação). E era o mundo do qual sempre quis fazer parte.
Jovem oficial, o meu primeiro passeio em qualquer porto a que chegasse era pelos cais, ver os navios que lá estavam, o que carregavam ou descarregavam; sempre achei fascinante a uniformidade, a semelhança do mundo marítimo - o que não é de espantar, porque não ha doze mil maneiras diferentes de operar um pau de carga, um guincho, de fazer uma lingada.
Esse mundo, como sabe - e, penso, não o lamenta - acabou. Já não há portalós, já não sem fazem lingadas, os navios já não têm paus de carga nem os portos gruas. Os estivadores já não carregam sacos de 50 quilos às costas, os "grupos" já não têm 12 pessoas; os navios continuam a atrasar-se, suponho (ou a chegar mais cedo, também não era raro), mas as esposas - ou esposos - dos tripulantes podem esperar por um telefonema para os ir buscar; ainda existem tascas em Alcântara, mas são muito menos. O pessoal do Porto ainda se junta num quiosque (experimente "Os Primos", tem as melhores chamuças de Lisboa) para uma bica e um bagaço - mas também isso desaparecerá; no Beira-Rio ainda se come divinamente, mas hoje tem mais gravatas e decotes do que fatos-macaco.
O seu post é muito bonito. Aquele mundo, com a sua violência, os seus cheiros, o seu vocabulário também era - o passado, não sei porquê, é sempre mais bonito do que o presente; e o que foi do que o que virá.
Infelizmente, nada disso justifica a ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara.
Há quarenta anos eu ia à Doca do Espanhol esperar o meu Pai, quando ele chegava de viagem. Lembro-me especialmente de uma das vezes, em que a chegada estava prevista para as três ou quatro da manhã e a minha Mãe acedeu a levar-me com ela. Morávamos na Parede, e ainda vejo o trajecto pela Marginal: quando guiava, a minha Mãe levava uma mão no volante e a outra na buzina, e o facto de serem três da manhã não era suficiente para a fazer mudar de hábitos.
Naquela altura os navios tinham sempre as mesmas tripulações; quando chegámos a Alcântara eu conhecia as outras senhoras que lá estavam (eram poucas, porque muitos dos tripulantes vinham de fora de Lisboa e poucos tinham carro). Fiquei orgulhoso, porque era a única criança. Como de costume, os atrasos e as mudanças de lugar da última da hora fizeram-me assistir ao meu primeiro nascer do sol fora de casa. O navio, um rebocador de alto mar chamado Cintra acabou por chegar. Creio que o meu gosto pelas manobras de navios vem daí: desde miúdo que as vejo, que oiço os comentários a respeito delas e - sobretudo - que estão ligadas a sentimentos muito fortes. Gostava de ver o meu Pai na proa (ou na ponte, quando ia de capitão); de entrar a bordo, de receber o beijo rápido que nos dava e de o ouvir dizer: "esperem que vou organizar a estadia"; de o ver receber as autoridades, dar instruções ao contramestre, preparar a roupa e o saco de roupa suja, objecto que sempre me fascinou; de adivinhar os presentes que ele trazia; dos cheiros: os do navio, os do porto. Gostava, sobretudo, do sentimento de camaradagem que via naquelas pessoas e que era quase tão forte como o que as ligava à família.
Como disse no seu post, nessa altura as docas fervilhavam: estivadores a chegar, os guindastes a porem-se em movimento, os gritos dos portalós (sempre gostei de os ouvir; "Vira!" "Arreia!" "Vira um pouco!" Arreia tudo!"), os palavrões, os camiões a posicionarem-se... Sempre estive ligado aos portos, e eles sempre foram, por excelência, o lugar do meu imaginário.
Mais tarde, já adulto, ia para a Doca do Espanhol tirar fotografias - ainda tenho um bom monte delas (deixo-lhe duas ou três). Sabia que aquele mundo estava a terminar, mas era o meu mundo, o mundo no qual eu crescera e o que conhecia (o meu Pai sempre esteve ligado à marinha mercante, ou à navegação). E era o mundo do qual sempre quis fazer parte.
Jovem oficial, o meu primeiro passeio em qualquer porto a que chegasse era pelos cais, ver os navios que lá estavam, o que carregavam ou descarregavam; sempre achei fascinante a uniformidade, a semelhança do mundo marítimo - o que não é de espantar, porque não ha doze mil maneiras diferentes de operar um pau de carga, um guincho, de fazer uma lingada.
Esse mundo, como sabe - e, penso, não o lamenta - acabou. Já não há portalós, já não sem fazem lingadas, os navios já não têm paus de carga nem os portos gruas. Os estivadores já não carregam sacos de 50 quilos às costas, os "grupos" já não têm 12 pessoas; os navios continuam a atrasar-se, suponho (ou a chegar mais cedo, também não era raro), mas as esposas - ou esposos - dos tripulantes podem esperar por um telefonema para os ir buscar; ainda existem tascas em Alcântara, mas são muito menos. O pessoal do Porto ainda se junta num quiosque (experimente "Os Primos", tem as melhores chamuças de Lisboa) para uma bica e um bagaço - mas também isso desaparecerá; no Beira-Rio ainda se come divinamente, mas hoje tem mais gravatas e decotes do que fatos-macaco.
O seu post é muito bonito. Aquele mundo, com a sua violência, os seus cheiros, o seu vocabulário também era - o passado, não sei porquê, é sempre mais bonito do que o presente; e o que foi do que o que virá.
Infelizmente, nada disso justifica a ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara.
Luís, acho profundamente ridículo e irritante este choradinho pelos desgraçados que trabalham. Como se a dignidade, o ganha-pão, a sobrevivência dos desgraçados que trabalham estivesse em causa! Porto haverá sempre, aqui ou numa proximidade qualquer. E ter uma Lisboa limpa, turisticamente atraente e com um trânsito facilitado, não é – ou não era até há uma semana – um capricho de ociosos. Grrr…
ResponderEliminarFaço minhas as palavras da Luísa. E os Grrr também... chega de demagogia fácil.
ResponderEliminarEste post é de uma ternura imensa, Luís, e tão forte e evocativo que me senti na doca do Espanhol dessa época, à espera de um navio qualquer, com um cheiro misturado de óleo e maresia nas narinas e a ansiedade nos olhos. Parabéns.
Gostei muito da "tinta" que usou para escrever este texto.
ResponderEliminarMensagem muito bem construída.
Conheci bem o Cais da Rocha Conde de Óbidos, quando em 1976 comecei a trabalhar, ali num edificio -o 102, creio- da Av. 24 de Julho.
Duas horas de almoço, suficientemente longas para um passeio diário, entre os navios, e observar ao longo do rio, os trabalhos de estiva.
Quando algum navio chegava, o mercado que rapidamente se montava naquele cenário -umbrella? umbrella?- de contrabando pobre, quase ridiculo, afinal os "umbrellas" custavam uma ninharia...
Tal como o Luís, eu gostava daquela mistura de cheiros e de vozes, rostos elevados ao esforço da carga, mãos duras com dedos deformados por muitos anos de cabos...
E os navios sempre a enfeitiçarem sonhos de partida e descoberta...
Gostei de o ler.
Tambem conheci esse mundo.
Excelente recordação, nostalgica...mas muito real.
ResponderEliminarObrigado pelas fotos do velho H.Capelo, o meu primeiro navio como oficial, há mais de 30 anos.