6.12.08

Chuva, azia, Fernet Branca, Maalox e outros dramas.

Estava a chover, e se há uma coisa com a qual uma galinha não sabe lidar é com a chuva. Sobretudo se estiver depenada, e lhe tiverem cortado a cabeça: a água entra pelo esófago - ou por aquilo que nas galinhas faz de esófago, não sei, não sou veterinário - e provoca uma terrível azia.

Por isso a galinha hesitava entre o Maalox Plus, fiel companheiro de todas as guerras, e o Fernet Branca, companheiro das outras. Optou pelos dois, prática habitual nas galinhas depenadas e sem cabeça. Pôs um chapéu e foi para o Cais das Colunas: gostava da luz do lugar, da ideia que antes dela já milhares de galinhas por ali tinham passado, com ou sem cabeça, com ou sem penas.

"Se bem sem penas não conheça ninguém", disse para o tubarão que irrompeu doutra história, coitado, ainda à procura do Cônsul, ou do cavalo. Não se preocupou: os tubarões não comem aves, e de qualquer forma era tão feia que nem um tubarão esfomeado a comeria. A galinha tentava deseperadamente lembrar-se dos livros que lera, mas sem cabeça não era fácil; dos discos que ouvira antes de a perder ainda se lembrava, felizmente. E dos Maalox que tomara, por via intravenosa enquanto teve lugar na pele para as injecções.

Era uma galinha feliz, de certa forma: não tinha cú para ovos nem cabeça para ter vontade de os ter. Era um tubo digestivo sem princípio nem fim, uma autoestrada para minhocas, um poço de azia, um deserto de desejos, um chapéu com pernas, e sem penas. Ninguém lhe ligava nenhuma, coisa que a fazia sofrer às segundas quartas e sextas e a alegrava às terças quintas e sábados. Aos domingos, descanso, "como o Senhor, e as serpentes" - os seus conhecimentos de teologia eram rudimentares, porque "a fé não é para galinhas, é para pintos, e galos maricas" (má-fé, uma das suas raras qualidades).

Era uma galinha honesta; todos os dias pedia para ser grelhada e todos os dias sofria com os golos que o Belenenses sofria, o seu clube. "Não há quem me ponha uma porra duma cabeça", queixava-se. "Felizmente tenho lugar para os comprimidos, e para o Fernet Branca". Não podia jogar futebol, coitada, sem penas. Entretanto, os filhos que em várias outras vidas fizera progrediam: um foi eleito "Frango do Ano", no respectivo galinheiro; outro ganhou um concurso gastronómico - foi cozinhado pelo melhor cozinheiro do país e comido pelo júri. A mãe estava orgulhosa: olhava para as colunas do Cais e pensava que pelo menos não tinha emigrado, o seu filho mais novo, o mais tenro, mais saboroso.

Às segundas-feiras ia comprar o milho da semana. Já ninguém se admirava de a ver sem cabeça, e por vezes nem ao trabalho de pôr o chapéu se dava. "Que se lixem, eles e a sensibilidade deles", pensava. "Se não gostam de ver um pescoço ao ar livre não olhem".

Às vezes, contudo, era infeliz. "Que pode uma galinha decapitada e depenada fazer?". Nâo se lembrava que a vida, quando tinha cabeça e penas, era exactamente a mesma - problemas de memória, sem dúvida.

Enfin, toujours est-il que la poule survivait - à l'air du temps, à la pluie qui tombait sans cesse, aux requins du Cais das Colunas, aux amitiés que maladroitement essayait dans les bars louches du Cais do Sodré (comme s'il y en avait, encore), aux attaques de ses deux enfants, l'un vivant l'autre dégusté, à l'absence de tête, aux quantités industrielles de Maalox prises avec le consentement d'une infirmière nymphomane et vegétarienne (suprême contradiction, à ses yeux), aux véritables fleuves de Fernet Branca que tous les jours buvait, histoire de se provoquer des aigreurs d'estomac - seul moyen de justifier le Maalox aux assurances.

Tous les jours notre poule voyait le ciel se couvrir de ses congénères, cheias de penas e com uma ideia fixa na cabeça (todas tinham uma): ir para sul, no inverno. Infelizmente, sem cabeça não se pode voar. "Qué vaya, com cabeça e sem Maalox também não; com Maalox e sem Fernet Branca tão-pouco; sem ti muito menos". Eu não ia, claro. Farto de Sul, e de vôos.

"No jodas!", dizia-me, quando nos encontrávamos no British Bar (era uma galinha poliglota), "would you just tell me when did it go wrong?". I couldn't. No way: things didn't just "go wrong": she was wrong from inception. And that (we were now at a Pub in Saville Row, a gay pub) was impossible to be said to her - she wouldn't listen, anyway. "¡No Jodas!", gritava-me, quando ouvia os meus silêncios.

No way. Rien à faire: Maalox et Fernet Branca, ma vieille. Millions of chickens would imagine themselves happy with such a prescription. Agora põe o chapéu, disfarça as penas (ou a falta delas), e vai dar uma volta, sim? Em Londres aconselho-te o Palace Strand, se precisares de descansar - é enorme, uma espécie de dormitório com ares de Somerset Maugham, mais impessoal do que uma morgue: não há sítio melhor para te repousares, para te reencontrares, para te esqueceres e esqueceres, tout court. Uma espécie de Ibis com 100 anos e bom gosto. Foi lá que encontrei Hölderlin: "Anjo celestial! exclamei eu, quem pode entender-te? quem pode dizer que te compreendeu inteiramente?"*

* - Hölderlin, "Hipérion ou o eremita da Grécia", ed. Assírio e Alvim, trad. Maria Teresa Dias Furtado.

1 comentário:

  1. Brilhante e talentosa galinha, mesmo sem cabeça! (pergunto-me como e onde equilibrará ela o chapéu...)

    Surrealismo português no seu melhor, e não só para galináceos...

    :-)

    ResponderEliminar

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.