1.1.09

Eu só sei dançar sozinho

Por vezes ela toca-me à campaínha às três da manhã, ou quatro - a qualquer hora. Eu abro-lhe a porta e nem "boa noite" oiço. "Ela abafou-me, outra vez", explica. "Ela", eu sei, é a tristeza, a solidão, a tristeza da solidão. "Desce sobre mim como um cobertor, como o cobertor de quando a minha avó me aconchegava na cama e de repente o frio desaparecia, percebes? Abafa-me, aconchega-me; parece que se faz noite, apesar de já ser noite". Não há nada a fazer: digo-lhe para entrar, preparo-lhe um Gin Tonic com duas ou três gotas de bitter Angostura, e deixo-a falar. Uma vez perguntei-lhe "Desce como um abutre?" e ela respondeu "Não, que horror, se fosse um abutre eu estaria morta, e não estou".

"Percorro a cidade, de noite, para saber aonde pertenço [where do I belong to, tinha feito a escola primária nas freiras inglesas de Belém, e a Universidade em Londres]. Hoje fui ao Santiago Alquimista, conheces?" Acenei uma vaga negativa. "O espaço é muito bonito, mas está povoado de meninos de coro que se fingem artistas. Prefiro o contrário". "Depois fui ao Maxime". "Esse conheço", encorajei-a. "Menos meninos de coro, menos artistas. Um nojo: tudo sujo, o chão peganhento, montes de homens. Não era sítio para uma mulher sozinha". Alexandra dificilmente entrava na categoria "mulher sozinha". Era muito pequenina, magra, morena como se tivesse saído ontem do Rif - mas quando se deslocava parecia ter um exército com ela. Não por ser agressiva, mas porque enchia o espaço todo, onde estava. "Enfim, uma merda. Acabei numa boîte cabo-verdiana. Sabes, dançar música africana não é difícil. Basta não te veres a dançar. É por isso que não gosto de tango: eles não dançam, olham-se."

São seis da manhã, Alexandra está deitada no sofá da sala com o copo de Gin na mão; reclina-se regularmente para o beber. Pessoalmente, não gosto de boîtes cabo-verdianas: aquela música dança-se sempre a dois, e eu só sei dançar sozinho. Há poucos povos africanos que dançam sistematicamente a dois, e poucas músicas. No Zaire isso acontecia, por vezes. Uma vez tive uma namorada muito bonita, jovem, que todas as noites tentava ensinar-me a dançar, na boîte de um maricas que tinha a música aos berros e onde íamos regularmente. Eu dizia-lhe, "Tsombé, eu não sei dançar a dois"; e ela respondia-me "Mas sabes fazer amor. Porque não consegues dançar?" "Porque se calhar faço amor sozinho". "Não sejas idiota". Como a minha hóspede, Tsombé era parca na fala, mas não hesitava muito na escolha de palavras.

Alexandra continua deitada no sofá. Não me importo de a acolher, seja a que horas for: fala pouco, e não me critica os silêncios - provavelmente até os agradece. Às vezes fazemos amor; mais frequentemente não: acabar na cama com ela faz-me pensar na Tsombé, e em como é bom fazer amor quando se ama, ou é amado (a reciprocidade não é essencial. Basta um amar, ou deixar-se amar). Com Alexandra a única reciprocidade é a do desejo; ela diz-me "f...-me, mas não vás mais longe do que a pele, porque para lá não há nada". Tsombé não: sentava-se em cima de mim, apontava para o umbigo e dizia: "até aqui". E partíamos os dois, à desfilada.

Alexandra acaba por adormecer, e fico na sala, a olhar para ela. Vou buscar um cobertor para a tapar. Eu só sei dançar sozinho.

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