10.2.09

Um sonho de S. Pedro

Esta história é mentira. Todas as histórias o são: basta contar-se uma coisa que aconteceu para a tornar mentira. Verdade é o que é, ou foi; não o que se conta. Pior: é uma tripla mentira – conta um sonho, e os sonhos são todos, sem excepção, mentira - se fossem verdade não seriam sonhos; e é o sonho de um tipo que não existiu. Isto é, talvez tenha existido. Talvez tenha existido na verdade. Mas na minha história não.

S. Pedro tinha muitos sonhos: é próprio dos tipos que têm dúvidas. Aliás, ainda hoje estou convencido de que foi por causa disso que fizeram dele a “primeira pedra”. “Tu és Pedro, e sobre esta pedra, etc.” Tinha razão, o Jesus: impérios não se constroem com certezas, mas sim com dúvidas, e sonhos. Por isso foi o escolhido.

É um tipo chato: passa a vida no Céu, é uma espécie de porteiro. Abre a porta do vento, fecha-a, abre a da chuva, a do sol. Aborrece-se mortalmente e por isso a nós também: o vento, por exemplo, nunca vem de onde devia vir; a porta da chuva devia estar fechada a sete chaves, e não está. Mas um dia S. Pedro teve um sonho divertido, e é essa história que vou contar.

Festejara os dois mil e tal anos da nascença do Jesus e bebera mais do que devia, o que produz sonhos bonitos, e realistas. A realidade é uma mistura de excesso de sonhos, excesso de álcool e excesso de dúvidas. O resto não passa de histórias: imaginam um tipo desprovido de imaginação, ou de whisky, fazer o mundo tal como é hoje e será amanhã? Nem uma cidade de Lego numa placa de 20 por 20, quanto mais o mundo... os gajos que não sonham conseguiram talvez evitar o que poderia ter sido, mas não fazer o que é. Adiante: não gosto deles. Por isso não gosto de S. Paulo, por exemplo: um homem vai a cavalo numa estrada, cheio de certezas. Cai. Levanta-se, e fica cheio das certezas contrárias. Para que lhe serviu cair, então? O contrário de uma certeza não é a certeza contrária.

Um dia S. Pedro estava na praia do céu, uma praia muito chata - parece o Guincho, mas em perfeito. Sem vento, com água menos fria, sem papagaios porque dão um gozo bestial a ver nem cavalos porque fazem cocó onde não devem. E sem aquele bar lá ao fundo, onde se está como se estivesse no Céu, porque o verdadeiro Céu não gosta de concorrência. É monopolista.

S. Pedro estava nessa praia, ligeiramente embriagado. Pouco: só tinha bebido alguns Gins Tónicos, uma garrafa de vinho e meia dúzia de whiskies. É um tipo frugal, e com pouco se embebeda. Estava na praia, a olhar para o céu - como será, o céu do Céu? - sem vento, sem papagaios, sem mulheres bonitas e adormeceu.

E foi assim que teve o sonho, o tal que vos vou contar. É um sonho complicado, reparem: envolve portas, ventos; senhoras bonitas, mostarda de chili (Chilli Mustard – os sonhos do S. Pedro são sempre na língua original) e um encontro atrás de uma nuvem muito grande; cavalos, pintoras, e – sobretudo – uma decisão sua: deixar a porta do vento sempre aberta, para que os ventos soprem de feição a quem viaja no vento, a cavalo num sonho.

II
Estava deitado na praia. Dormia. Apetecia-lhe sonhar, ter um daqueles sonhos cheios de cores com mulheres bonitas, homens que vão e vêm e voltam em vão aos sítios de onde nunca deviam ter saído. Um deles oferece-lhe um pote de mostarda picante e diz-lhe (ou ele ouve o outro dizer-lhe; não se sabe): “nunca deixes que te chegue ao nariz”. “Não tenho nariz”, responde. É verdade: um cavalo a quem tentava dar cenouras comeu-lho. Estranhamente sangra pouco. A namorada do homem que lhe dá a mostarda aparece: é uma senhora muito bonita, com uns cabelos pretos que, de tão densos, parecem uma floresta de pau-preto passada por aquelas lentes que tornam tudo mais fino e flexível. “Dá-me a mostarda” – diz ela. Mas o outro já a tinha oferecido a S. Pedro, que tenta falar mas não pode: um dos papagaios escondeu-se-lhe na garganta, e come-lhe as cordas vocais. A cauda é enorme, e aos comandos está um miúdo de óculos escuros com um saxofone na boca. S. Pedro apercebe-se de que o puto tem três pares de braços: um para o papagaio, outro para o saxofone e o terceiro para ler um ensaio sobre um surto de doenças epidémicas na cultura de mexilhões das costas sudoeste da Tasmânia (durante o inverno austral. Era esse o verdadeiro ponto de interesse do livro).

Não sabe que fazer: incapaz de falar, com mostarda mas sem nariz, um saxofone que o enche de vontade de voltar àquele último jantar – como teria sido, se tivesse música boa? – um cavalo que mastiga calmamente o seu nariz, e uma senhora que de repente começa a pintar pendurada na cauda do papagaio com um pincel gigante, que tanto vai buscar cores ao mar como às nuvens, ao céu ou ao seu nariz pouco sangrento.

A desordem é total, o caos. S. Pedro não está habituado a sonhos assim. Pensa que só uma gigantesca corrente de ar conseguirá pôr ordem naquele quadro. Abre a porta do vento, de todos os ventos. Acorda e a ordem restabelece-se.

III
Não é mentira: todos os sonhos, todas as verdades e todas as histórias são verdade porque são sonhos.

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