8.5.09

Fragmento

"Há vezes em que precisamos de barragens contra as palavras, e há vezes em que precisamos de lhes abrir as comportas, às barragens, porque as palavras nos cirandam por tudo quanto é canto e veia e artéria e canal e nos saltam pelos poros e pelos olhos orelhas e há vezes em que se escondem, as cabras e há que ir buscá-las uma a uma, puxá-las das profundezas das grutas onde se encafuaram.

E depois lá aparece uma a boiar, porque as palavras andam sempre a banhar num líquido semiótico - ou será amniótico? Nunca sei - e há uma que lá vem à superfície como as garrafinhas do "Era uma vez na América" e por ali fica até que alguém a venha apanhar e beber.

Hoje a que me calhou na rifa foi "Juízo", e de como a falta dele é tão benéfica, ou de como quantas vezes nos enganamos na definição da coisa e aquilo que nos aparecia como falta de juízo no fundo se revelou um juízo enorme. Mas isto só acontece quando as palavras estão todas misturadas e muitas vezes andam - quase sempre, aliás.

"Juízo" anda sempre misturado, por exemplo, com "razão", e nunca aparece com "intuição" - assim como andam misturadas, as palavras por vezes criam inimigas, ou antagonismos estúpidos e recusam-se a aparecer juntamente com outras. "Juízo" e "intuição" são dessas, nunca aparecem juntas, mas eu cá para mim acho que deviam andar muito mais juntas do que andam pela razão simples e irrefutável que na vida real não se largam. Refiro-me à vida onde não há palavras, à vida onde pelo menos não são elas que mandam, porque há uma vida assim, uma vida sem palavras, uma vida onde a gente quer dizer as coisas e as coisas não se deixam dizer e depois há outra vida em que é preciso conter as palavras, se bem muitas vezes nem duas barragens cheguem, quanto mais uma só.

... "juízo" e "medo" também andam sempre juntas, amam-se sem parar e adquiriram uma respeitabilidade enorme ..."

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.