As coisas devem ser contextualizadas: tudo acontece por acaso, mas não no acaso. Por exemplo: o conjunto de genes que faz de nós o que somos é fruto da combinação aleatória de vários códigos genéticos que são, eles mesmos, fruto de outras combinações aleatórias. Mas é esse código genético que vai determinar a maneira como lidamos com o conjunto de acasos que se nos vão deparando ao longo da vida; é ele que determina, mesmo, se esse conjunto de acasos deve manter-se ou se a nossa vida vai ser um percurso tão linear e previsível como o de um comboio suíço, ou alemão. Por isso, e não por ter particular orgulho nela - não tenho, como tão pouco tenho vergonha - começo por vos falar da minha família.
A minha avó materna chamava-se Feliciana. Nasceu e viveu na província. Vinha de uma família de grandes proprietários e casou com um banqueiro muito rico. Em casa tinha um cozinheiro francês e um chauffeur americano (o único povo, segundo o marido dela, que percebia os automóveis). Sabia tocar piano, declamar poesia, organizar banquetes. Teve duas filhas: a minha tia Rosa e a minha Mãe; e dois filhos, que morreram novos. Pouco importa. Devia ser sensual, pois ao que parece enganava o banqueiro de todas as formas e feitios. Um dia, fugiu com um artista de circo (enfim, "artista" é um exagero: o homem, 15 anos mais novo do que ela, era o palhaço pobre de um circo paupérrimo). Só a conheci quando o palhaço - o senhor tinha nome, mas não em nossa casa - morreu.
Para ajudar a economia doméstica a avó Feliciana tinha entretanto aprendido a fazer malabarismos com garrafas e bolas. Mais tarde, aproveitaria a sua experiência no circo para dar aulas de ginástica nos colégios privados da cidade, onde afrontava a direito, de cabeça erguida e com um ocasional manguito os olhares reprovadores das mães que a conheciam, ou lhe conheciam a história. Aliás, foi dela que vi o meu primeiro manguito; gesto que nunca deixou, desde esse dia, de me encantar.
O meu avô, marido dela, era um pedante de merda, podre de rico, banqueiro de caricatura: chapéu alto, barriga e charuto. Chamávamos-lhe "Avô Fachadas", porque vivia para ser visto. Queixava-se-nos frequentemente da minha avó, não por ela o ter deixado, mas por ter fugido com um palhaço pobre. "Se ao menos tivesse sido com o domador de leões" - (o circo nem gatos tinha, quanto mais leões) - "ou com o dono do circo... Mas com um palhaço! Que desgraça". Morreu muito velho, pendurado num charuto (apagado, porque estava no hospital).
Foi aliás nesse hospital que o primeiro de uma longa série de acasos e erros que iriam marcar a minha vida aconteceu: estávamos os primos todos (éramos seis) a comentar a fuga da avó. Éramos-lhe favoráveis, claro. Pensávamos que ele estava em coma. Não estava. A certa altura largou um rugido de besta ferida, pôs-nos a todos na rua e chamou o advogado. Refez o testamento e não nos deixou nada. Nem a nós, nem às duas filhas, porque calculava que delas o dinheiro viria para nós (nessa altura ainda era possível; hoje já não é). Morreu pouco depois. Deixou o dinheiro todo a uma instituição de caridade da qual, viémos a descobrir mais tarde, um dos administradores era o advogado. Os nossos pais ainda tentaram impugnar o testamento, mas sem sucesso. Deve ter sido a única vez na vida que fez qualquer coisa sem se preocupar com o que se diria dele.
A fortuna do avô Fachadas cresceu bastante quando, nos últimos vinte ou trinta anos da sua vida se dedicou a comprar e vender políticos. Era uma forma, explicava, de estar "no imobiliário, indirectamente". Aos políticos que ele corrompeu se devem muitas das obras inúteis, estapafúrdias e caríssimas de que o nosso país está pejado. Foi mais ou menos por essa altura que reencontrámos a Avó Feliciana: o palhaço morreu pouco depois do Fachadas. Teve uma morte chata: tinha decidido deixar de ser palhaço e tornara-se trapezista. Aspirava a voos mais altos, suponho. Um dia escorregou e, como os circos nessa altura não tinham redes, estatelou-se no chão.
A avó apareceu-nos lá em casa e acabou por ficar connosco: a minha tia Rosa não tinha lugar para ela. Ria-se, ria-se muito cada vez que se falava na fortuna que "perdêramos". A verdade é que cada um de nós estava a preparar-se para dilapidar a sua parte, cada um à sua maneira.
A minha avó materna chamava-se Feliciana. Nasceu e viveu na província. Vinha de uma família de grandes proprietários e casou com um banqueiro muito rico. Em casa tinha um cozinheiro francês e um chauffeur americano (o único povo, segundo o marido dela, que percebia os automóveis). Sabia tocar piano, declamar poesia, organizar banquetes. Teve duas filhas: a minha tia Rosa e a minha Mãe; e dois filhos, que morreram novos. Pouco importa. Devia ser sensual, pois ao que parece enganava o banqueiro de todas as formas e feitios. Um dia, fugiu com um artista de circo (enfim, "artista" é um exagero: o homem, 15 anos mais novo do que ela, era o palhaço pobre de um circo paupérrimo). Só a conheci quando o palhaço - o senhor tinha nome, mas não em nossa casa - morreu.
Para ajudar a economia doméstica a avó Feliciana tinha entretanto aprendido a fazer malabarismos com garrafas e bolas. Mais tarde, aproveitaria a sua experiência no circo para dar aulas de ginástica nos colégios privados da cidade, onde afrontava a direito, de cabeça erguida e com um ocasional manguito os olhares reprovadores das mães que a conheciam, ou lhe conheciam a história. Aliás, foi dela que vi o meu primeiro manguito; gesto que nunca deixou, desde esse dia, de me encantar.
O meu avô, marido dela, era um pedante de merda, podre de rico, banqueiro de caricatura: chapéu alto, barriga e charuto. Chamávamos-lhe "Avô Fachadas", porque vivia para ser visto. Queixava-se-nos frequentemente da minha avó, não por ela o ter deixado, mas por ter fugido com um palhaço pobre. "Se ao menos tivesse sido com o domador de leões" - (o circo nem gatos tinha, quanto mais leões) - "ou com o dono do circo... Mas com um palhaço! Que desgraça". Morreu muito velho, pendurado num charuto (apagado, porque estava no hospital).
Foi aliás nesse hospital que o primeiro de uma longa série de acasos e erros que iriam marcar a minha vida aconteceu: estávamos os primos todos (éramos seis) a comentar a fuga da avó. Éramos-lhe favoráveis, claro. Pensávamos que ele estava em coma. Não estava. A certa altura largou um rugido de besta ferida, pôs-nos a todos na rua e chamou o advogado. Refez o testamento e não nos deixou nada. Nem a nós, nem às duas filhas, porque calculava que delas o dinheiro viria para nós (nessa altura ainda era possível; hoje já não é). Morreu pouco depois. Deixou o dinheiro todo a uma instituição de caridade da qual, viémos a descobrir mais tarde, um dos administradores era o advogado. Os nossos pais ainda tentaram impugnar o testamento, mas sem sucesso. Deve ter sido a única vez na vida que fez qualquer coisa sem se preocupar com o que se diria dele.
A fortuna do avô Fachadas cresceu bastante quando, nos últimos vinte ou trinta anos da sua vida se dedicou a comprar e vender políticos. Era uma forma, explicava, de estar "no imobiliário, indirectamente". Aos políticos que ele corrompeu se devem muitas das obras inúteis, estapafúrdias e caríssimas de que o nosso país está pejado. Foi mais ou menos por essa altura que reencontrámos a Avó Feliciana: o palhaço morreu pouco depois do Fachadas. Teve uma morte chata: tinha decidido deixar de ser palhaço e tornara-se trapezista. Aspirava a voos mais altos, suponho. Um dia escorregou e, como os circos nessa altura não tinham redes, estatelou-se no chão.
A avó apareceu-nos lá em casa e acabou por ficar connosco: a minha tia Rosa não tinha lugar para ela. Ria-se, ria-se muito cada vez que se falava na fortuna que "perdêramos". A verdade é que cada um de nós estava a preparar-se para dilapidar a sua parte, cada um à sua maneira.
Enfim, agora é irrelevante. Do avô Fachadas dizíamos na família que tinha duas sombras: a dele e a de quem ele pensava que era. Muito maior, claro. As duas raramente se encontravam. Era incapaz de citar o nome de uma pessoa sem mencionar o lugar que ocupava na hierarquia da empresa e as suas posses: "Fulano de tal - administrador da Coisas e Loisas; tem uma casa no Algarve com 5,000 metros quadrados e 20 quartos". Ou "Sicrana (é a mulher do Coiso de Loiso e Poiso. Acabou de mandar fazer uma casa toda em cristal, no Minho)" - quando as posições hierárquicas ou as posses não coincidiam totalmente com a verdade ele não se importava; tal como nós, de resto. Pouco a pouco foi-se-lhe tornando cada vez mais difícil mencionar pessoas que não tivessem um lugar importante ou um grande património. Um dia disse-me "Eu só fumo Cohibas", o que me chateou porque nunca mais fui capaz de os apreciar devidamente. E não se demoveu nem quando lhe disse que o Fidel Castro também: "Ora aí está. Eu bem te dizia. Um gajo que é dono de Cuba sabe decerto do que fala".
Esta era a família pelo lado da minha Mãe. Do lado do Pai eram mais simples. Aliás, eram simples. A avó chamava-se Vitória; gostava dela que me fartava: aos seis anos deu-me a provar Ginginha pela primeira vez - uma ginginha caseira, boa, que ela começava a beber pouco depois do pequeno almoço; e o avô, Gabriel, que era filho do filho bastardo de um conde (se bem me lembro. Por razões que não percebo esta parte da família sempre me foi um bocadinho obscura) e foi para o Alentejo (eram do Norte) vender leite. Foi preso uma vez ou duas porque misturava o leite com mijo; acto esse que justificava com a seca: "As vacas não dão leite, senhor agente. Quer quer que eu faça?"
Não sei onde conheceu a minha avó Vitória, assim chamada em homenagem à sua homónima inglesa. Algures no seu passado havia um inglês que tinha trabalhado nos navios, e desembarcara em Portugal. Nunca soubemos se à força se de livre vontade.
(Cont.)
*****:-)
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