4.11.09

Luísa - versão integral

I
O pôr-do-sol é o melhor momento para se largar de um porto, qualquer marinheiro vo-lo dirá. Já para começar um conto é menos propício: quantos não abrem com “o sol estava a desaparecer no horizonte e iluminava-lhe os cabelos com uma luz dourada, etc., etc.”? Ou: “a noite chegava e com ela a dúvida / a angústia / a solidão”?

Mas enfim, é ao pôr-do-sol que este conto começa. Com uma senhora sentada à beira-mar e voltada para poente. É alta (o suficiente pelo menos para o vermos com ela sentada); elegante, bonita – cabelos e olhos castanhos e grandes, magra mas não magricela, seios grandes, redondos (mais tarde saberemos que os mamilos também: grandes, redondos, escuros, duros).

A senhora está sentada à beira-mar, voltada para poente. Onde? Talvez nas falésias das Azenhas do Mar, no cabo da Roca, na Ericeira? Escolho as Azenhas. Como se chama? É difícil dar um nome às personagens femininas: gosto de todos os nomes de mulher: Ana, Paula, Margarida, Filipa, Susana, Helena, Sandra, Rita, Rosa. Não sei; talvez Luísa.

Chama-se Luísa, sabemos que é bonita, elegante e tem olhos grandes: podemos imaginá-los a receber aquela luz toda, espessa porque carregada de humidade; e a devolvê-la, como se fossem eles, os olhos, a iluminar a cena, e não o contrário. Talvez.

Que idade tem? Quem é? De onde vem? Porque está ali, sentada no topo de uma falésia? É feliz? Tem pais, irmãos, um marido? Será sensual? Pouco me interessa, para dizer a verdade. Mas imagino que quem esteja a ler queira saber: Luísa tem 38 anos; dois filhos – um rapaz de 13 e uma rapariga de 11; é casada – conheceu o marido no liceu e casou-se ainda não tinha acabado o curso de medicina, “para arrumar esse assunto”; é uma senhora da média-alta burguesia, médica, filha e neta de médicos. O avô fez qualquer coisa em prol da saúde no nosso país – talvez tenha inventado uma vacina, não sei; ou a tenha tornado obrigatória, ou construído um sanatório na montanha. Pouco importa: o avô só serve para mostrar, ocasionalmente (ou seja, quando se aborrece num jantar de novos-ricos, ou novos-pobres, que ainda são piores) que tem pergaminhos na família. E sim, é sensual, por constituição e educação. Luísa seguiu à letra o conselho da mãe: «nada se leva desta vida, filha, senão duas ou três quecas bem sentidas. E não te fiques por “duas ou três”: todas as que deres serão poucas».

Luísa fez o que a mãe lhe dizia. Casou-se com o primeiro palerma que lho pediu – um velho colega do liceu e mais tarde da faculdade, herdeiro de uma fortuna do Alentejo, «que», explicava ela, «é óptimo na cama: fode em dois minutos, dói menos do que uma picada de mosca. E quando não está na cama não se vê, não se ouve, não se cheira». E tem um grupo de amantes (não sei se “grupo” é o termo correcto: não se conhecem; e mudam com a frequência de uma lua bêbeda) que ela manipula a seu bel-prazer.

Aos filhos, Luísa tenta inculcar os seus valores: liberdade, independência, indiferença à doxa, impermeabilidade ao dogma – um conjunto de valores aos quais ela chama “soberania”. «Ser bem-educado», dizia-lhes muitas vezes, «não é obedecer cegamente às regras da boa educação; é conhecê-las»; ou: «temos que conhecer as regras para as podermos desrespeitar: é essa a diferença entre a independência e a selvajaria». Quando o filho começou a dar os primeiros sinais de rebeldia: «ser rebelde por sistema é uma servidão, Pedro».

Luísa vê o mundo como um inelutável conjunto de prisões; ser livre (ou "soberano", como ela diz) é escolhê-las, poder entrar e sair delas quando e como lhe apetece.

De todos os seus amantes, tem especial carinho por Ricardo, um músico cego que ela conheceu num concerto. Ricardo é um excelente pianista, cantor, compositor. É cego mas não é dependente - por isso Luísa se sentiu atraída por ele. Tem um sentido de humor devastador, sarcástico. Quando lhe falam em Stevie Wonder ele simula uma modéstia que não sente e diz «não, acho que sou mais como Snooks Eaglin». Como ninguém sabe quem diabo é (ou foi) Snooks Eaglin as pessoas afastam-se constrangidas. Ricardo e Luísa riem-se: há entre eles uma cumplicidade que dispensa a vista e as palavras. Ricardo sabe que não é Stevie Wonder, e que a música que faz é boa. Vive bem nesse intervalo: vive bem consigo próprio, vive bem com a cegueira. É casado com uma senhora a quem chama, depreciativamente, "a minha missionária". O casamento mantém-se por inércia e por má-consciência de ambos: quando se casaram ele queria ajuda e ela queria ajudá-lo; ora a ajuda - tenha ela a forma e os motivos que tiver - é a pior das razões para um casamento.

Cada um deles aprendeu a viver primeiro sem o apoio do outro, depois sem o outro. Ora para Filipa ajudar Ricardo era uma poderosa forma de auto-ajuda. E enganosa, também, mas isso fica para depois.

II
Luísa é uma médica de 38 anos. Está sentada ao pôr-do-sol no alto de uma falésia nas Azenhas do Mar. Tem dois filhos, um casamento a que atribui tanta importância como a que atribui à cor dos vestidos que leva para o trabalho: pouca, raramente; e nenhuma, a esmagadora maioria dos dias; e vários amantes. Desses, o seu favorito é Ricardo, um pianista cego que conheceu num concerto. Luísa acredita na liberdade, na independência, na soberania do individuo e passou uma vida – enfim, “pelo menos até agora” – a lutar por elas e a inculcá-las no espírito dos filhos – Pedro, de 13 anos e, e... - como hei-de chamar-lhe? Alexandra? Gosto do nome: é bonito, evoca grandes feitos e grandes feitios. Fica Alexandra – Alexandra, de 11.

Já sabemos muito dela. Mas que sabemos, na realidade? Que se sabe de alguém? As pessoas são como um puzzle: se Deus existisse talvez Ele tivesse as peças todas; mas como não existe – pelo menos neste conto, pelo menos por hoje – elas estão espalhadas por muitas mãos, por muitos olhos.

Pelas, e pelos de Ricardo, por exemplo: para ele Luísa é uma voz, antes de mais nada. Uma voz grave, brincalhona, sorridente, com a qual diz maldades violentas sobre tudo e todos, conta piadas grosseiras e lhe sussurra asneiras quando fazem amor. É também uma pele; uma cabeleira espessa na qual ele mergulha as mãos; um par de seios do qual ele sente os mamilos, as auréolas grandes e duras. Para Ricardo Luísa é um som e um corpo – mas nunca, por exemplo, saberá como são olhos castanhos. Ele acaricia-lhos muitas vezes; beija-os, tenta ouvi-los (não consegue, claro. É uma brincadeira: «fecha os olhos, a ver se os oiço. Ouvi, vês? Eu não te dizia? Os olhos não são apenas o espelho da alma, são-lhe também o microfone». «Não os fechei, idiota»).

Ricardo gosta da força com que Luísa o aperta quando se vem; e das felações que ela lhe faz – às vezes em locais ou momentos que ele desconfia não serem os mais apropriados (o que de resto lhe é totalmente indiferente: não ver é não ser visto - isto é, naturalmente, uma observação feita por quem vê). Conhece-a, no sentido em que, por exemplo, sabe como ela vai comentar uma notícia na rádio, ou uma conversa na mesa ao lado, ou responder-lhe a qualquer coisa que ele lhe diga; mas nunca a viu. Os comentários que ela faz às suas músicas são pertinentes – Luísa teve uma educação cuidada, é curiosa e não é pedante. Ou seja: pode ser, e é, culta. Ricardo sente-se bem com ela. «É mais», pensa, «do que dão muitos amores».

O marido faz dela outra imagem, claro: ele sabe que o casamento já não existe, mas pensa que Luísa deixou de o amar. Não lhe passa pela cabeça, preocupada apenas com automóveis “topo de gama”, roupas “topo de gama”, vinhos “topo de gama”, botões de punho “topo de gama”, resorts “topo de gama” que a mulher topo de gama que com ele vive nunca o suportou sequer, que se casou com ele porque fodia muito depressa e era palerma – coisa que ainda é, de resto. Durante alguns anos António pensou que ela se tinha casado por causa do dinheiro, mas foi obrigado a reconhecer – a realidade acaba sempre por se impor, mesmo que demore algum tempo – que tal não era o caso: Luísa tem pelo dinheiro um respeito que ele não tem, mas não depende nem se interessa por ele. Como muitos outros, o homem não tem bagagem intelectual suficiente para perceber que a estupidez pode ser a mais simples das prisões, a menos complexa das liberdades.

Sempre se sentiu inibido face à mulher: reconhece nela uma força – ou melhor, forças – que ele não apreende, nem controla. Um dia percebeu que os filhos tão-pouco lhe ligam: a mãe ocupou o seu, dele, vazio.

Para António Luísa também é um corpo; mas um corpo diferente do que é para Ricardo: um cabide com pernas onde pendurar os exclusivos modelos que lhe compra, para exibir nos restaurantes de luxo nos quais pavoneia a sua nulidade e dilapida o dinheiro da família (mais o que ganha como médico do jet set pindérico das revistas cor-de-rosa, e de um clube de futebol desses que aparecem nos jornais todos os dias, tanto por causa do futebol como das patifarias dos seus dirigentes). António vê Luísa todos os dias, e às vezes à noite, quando vai ao quarto dela (de onde é imediatamente expulso), mas sabe menos dela, conhece-a menos do que Ricardo, ou alguns dos seus outros amantes.

Há muito tempo que António se adaptou a esta situação e não sente tristeza. Tem um círculo social do qual Luísa se excluiu totalmente, o que lhe permite engatar tudo o que lhe passe ao alcance do bolso e tenha menos de dois terços da sua idade ("um dia será metade", diz não sei se com apreensão se com orgulho). Não gosto de António, nada; e gosto muito de Luísa - é bem visível. Mas isso fica para depois. Por agora só há uma pergunta importante: o que faz Luísa no alto da falésia? O que vai acontecer a seguir?

Luísa está apaixonada por Ricardo, mas não pode, ou não quer, reconhecê-lo; e ele por ela, mas não sabe dizê-lo. Seria a primeira vez, para ambos. "Numa relação amorosa sabe-se como se entra, e não como se sai; e quando é ao contrário é pior: não se sabe como se entra mas sabe-se que acaba invariavelmente com lágrimas, baba e ranho, e choro. Num abismo, ao menos, sabemos como entramos e como acabamos: esmagados contra as rochas, que ficam cobertas de sangue e pedaços de carne. Para gáudio dos caranguejos, que se refastelam com o inesperado festim. Não sei se será melhor". Luísa olhava para baixo e a imagem não a atraía particularmente - excepto talvez a ideia que as vagas acabariam por tudo limpar. "Nada fica de nada. O mar limpa tudo; e se não for o mar é o tempo".

Mas é estúpido - aqui intervenho eu - suicidar-se nestas circunstâncias. Espero que Luísa não decida saltar, só porque está, ao 38 anos, confrontada com uma situação que sempre recusou, até hoje com sucesso. Ela deve pensar no resto: na profissão, da qual gosta e na qual se reconhece ("fazer bem a alguém que nem sequer se conhece e de quem não podemos, ou devemos, gostar"); nos filhos ("é estranho, como consegui estabelecer estes laços com eles, sem nada ter feito para isso"); em Ricardo ("como reagiria, se eu saltasse? Diria qualquer coisa como "coitada, esqueceu-se do pára-quedas", ou "estaria a olhar para longe e não viu o que lhe estava à frente do nariz?" e continuaria a tocar? Não creio"). Além de que olhar para um abismo real não é, nem de longe, a mesma coisa do que olhar para um abismo metafórico. E neste, pelo menos, tem-se algum prazer, enquanto se cai.

III
Começo por agradecer ao autor ter-me dado a conhecer alguns pormenores desse fim de tarde. Mas devo dizer que o texto está pejado de erros, omissões e pelo menos uma tolice monumental: nunca por nunca ser pela cabeça de minha Mãe passaria a ideia de suicídio, por muito apelativa que lhe fosse – e seria com certeza – a imagem dos caranguejos a refastelarem-se com a sua carne e o seu sangue. E a de que o Mar e o tempo limpariam tudo. Caranguejos antropófagos, mar e tempo: um conjunto que ela acharia irresistível – mas daí a pensar em matar-se há um passo no qual o autor se perdeu.

Lembro-me bem do que aconteceu nesse dia depois de a Mãe ter chegado a casa: houve uma discussão enorme entre ela e o Pai, o que era raro (já não se davam ao trabalho de discutir) porque a Mãe lhe disse que tinha atirado fora a carteira Vuitton que ele lhe oferecera no princípio do casamento; e que com ela tinham ido o «telefone “topo de gama”, os óculos “topo de gama” e toda a “merda topo de merda que me ofereceste e que eu não quero ver mais, nunca mais». Foi também nesse dia que decidiram divorciar-se. O Pedro e eu ouvimo-los tratar dos pormenores como se estivessem a combinar o menu de um jantar. Ou menos ainda: a Mãe disse ao Pai que não queria nada dele e que só levaria os objectos que ela própria tinha comprado. E que quando arranjasse casa veria como fazer connosco. O Pedro estava contente, mas eu mal continha o choro.

Ao contrário do que o autor faz crer, a minha Mãe era extremamente rígida com a nossa educação: passava a vida a dizer-nos para fechar a boca, ou tirar os cotovelos de cima da mesa, as mãos de debaixo da mesa, dizer obrigado, fazer isto, não fazer aquilo. Se ela queria ensinar-nos a libertar-nos das regras era pela via do excesso.

E o Pai não é tão mau como ele o descreve. Por baixo daquela fachada espaventosa há um homem sensível, com sentimentos que só não expunha mais porque a Mãe os ridicularizaria inapelavelmente. Não é muito culto, é certo. Mas gosta de nós; e tinha com o dinheiro uma relação mais saudável do que a Mãe: com a sua aversão a tudo o que lhe cheirasse a “servidão” – uso aspas porque para a Mãe nada havia que não fosse um passo para a escravidão absoluta – ela dizia que o dinheiro só liberta se se tiver muito, ou nenhum; e que ela por ela mais vale ter muito. Zangava-se (enfim, ela raramente se zangava. Gozava) com o Pai por causa das compras estapafúrdias que ele fazia. “Hummm, mais uma grade na porta. Felizmente é Hermès”, por exemplo, quando o pai lhe ofereceu um carré Hermes (ele não percebia que objectos ou coisas pelas quais as outras mulheres venderiam a família deixavam a Mãe indiferente). “Mais vale uma grade Hermès do que uma Roskoff”, retorquia-lhe. “Uma grade é uma grade, meu caro; mas obrigada, de qualquer forma” – aquele “obrigada” era dito com uma entoação que me arrepiava.

Naquele dia decidiram que se separavam. A perspectiva de ficar com o Pai assustava-me: eu era (ainda sou) muito insegura – obrigada ao autor pelos “feitos e feitios” – e a ideia de ter que conviver com Pai era-me difícil. Nem eu nem o Pedro podíamos adivinhar que ela iria para casa do Ricardo – nós já o tínhamos visto, de vez em quando, com ela; mas não sabíamos, claro, que se conheciam e amavam.

Agora a Filipa vive com o Pai, e a Mãe com o Ricardo. A Filipa é simpática, carinhosa, doce. Acho que é a pessoa indicada para o Pai.

IV
A minha irmã tem, coitada, uma irreprimível tendência para a asneira. Acha-se insegura; deve ser por isso que hoje – faz 18 anos – se inscreveu como voluntária nos Médecins sans Frontières. Andava a falar nisso há algum tempo. Eu bem tentei fazer-lhe ver que é uma tolice. Mas ela – a insegura – fez ouvidos de mercador. Quer ir para medicina, quando voltar. O Pai propôs-lhe um estágio no clube de futebol, em vez de África, para onde ela pediu para ser enviada (deve pensar que o humanitário é uma agência de viagens). A Mãe e o Ricardo só lhe perguntaram se tinha a certeza, e aconselharam-na a usar camisas-de-vénus; «sempre, ouviste? Sempre». E a ter cuidado, claro.

A Filipa anda a ajudar o pai a dilapidar o que lhe resta de dinheiro. Felizmente tem muito, e a Mãe já o obrigou a dar-nos o suficiente para não termos que nos preocupar. Continua com o consultório e o hospital; mas desinteressou-se dos amantes: «o Ricardo chega-me». Continua a mesma: independente, soberana, livre. Fui para casa deles pouco depois de a Filipa ter saído. A Alexandra ficou em casa do meu pai. A Mãe sempre nos ensinou a escolher – e sempre respeitou as nossas escolhas. Eu estou a fazer Direito. Quero ser advogado – há médicos que cheguem na família.

V
Luísa está sentada nas falésias; subitamente levanta-se e atira a carteira ao mar. Fica a ver os objectos caírem, lentamente, num silêncio denso, cor de sangue. Vai para o carro. «Não sei o que é o amor, mas sei o que ele não deve ser».



Lisboa, 04/11/2009

2 comentários:

  1. Santo Deus, Luís! Depois de tudo isto, a heroína ainda não sabe o que é o amor? Mulher fria! ;-)

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  2. Fria, racional, livre... Previ essa crítica, mas não creio que uma pessoa que decide mudar de vida, sobretudo naquele contexto, possa ser chamada de fria.

    Cada vez gosto da ideia de "conhecimentos negativos": não sabermos o que uma coisa é mas sabermos o que não é.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.