O pôr-do-sol é o melhor momento para se largar de um porto, qualquer marinheiro vo-lo dirá. Já para começar um conto é menos propício: quantos não abrem com “o sol estava a desaparecer no horizonte e iluminava-lhe os cabelos com uma luz dourada, etc., etc.”? Ou: “a noite chegava e com ela a dúvida / a angústia / a solidão”?
Mas enfim, é ao pôr-do-sol que este conto começa. Com uma senhora sentada à beira-mar e voltada para poente. É alta (o suficiente pelo menos para o vermos com ela sentada); elegante, bonita – cabelos e olhos castanhos e grandes, magra mas não magricela, seios grandes, redondos (mais tarde saberemos que os mamilos também: grandes, redondos, escuros, duros).
A senhora está sentada à beira-mar, voltada para poente. Onde? Talvez nas falésias das Azenhas do Mar, no cabo da Roca, na Ericeira? Escolho as Azenhas. Como se chama? É difícil dar um nome às personagens femininas: gosto de todos os nomes de mulher: Ana, Paula, Margarida, Filipa, Susana, Helena, Sandra, Rita, Rosa. Não sei; talvez Luísa. Vá, fica Luísa.
Sabemos agora que a senhora sentada num muro ao pôr-do-sol, face ao mar e ao poente se chama Luísa. Sabemos que é bonita, elegante e tem olhos grandes: podemos imaginá-los a receber aquela luz toda, espessa porque carregada de humidade; e a devolvê-la, como se fossem eles, os olhos, a iluminar a cena, e não o contrário. Talvez.
Que idade tem? Quem é? De onde vem? Porque está ali, sentada no topo de uma falésia? É feliz? Tem pais, irmãos, um marido? Será sensual? Pouco me interessa, para dizer a verdade. Mas imagino que quem esteja a ler queira saber: Luísa tem 38 anos; dois filhos – um rapaz de 13 e uma rapariga de 11; é casada – conheceu o marido no liceu e casou-se ainda não tinha acabado o curso de medicina, “para arrumar esse assunto”; é uma senhora da média-alta burguesia, médica, filha e neta de médicos. O avô fez qualquer coisa em prol da saúde no nosso país – talvez tenha inventado uma vacina, não sei; ou a tenha tornado obrigatória, ou construído um sanatório na montanha. Pouco importa: o avô só serve para mostrar, ocasionalmente (ou seja, quando se aborrece num jantar de novos-ricos, ou novos-pobres, que ainda são piores), que tem pergaminhos na família. E sim, é sensual, por constituição e educação. Luísa seguiu à letra o conselho da mãe: “nada se leva desta vida, filha, senão duas ou três quecas bem sentidas. E não te fiques por “duas ou três”: todas as que deres serão poucas”.
Luísa fez o que a mãe lhe dizia. Casou-se com o primeiro palerma que lho pediu – um velho colega do liceu e mais tarde da faculdade, herdeiro de uma fortuna do Alentejo, “que”, explicava ela, “é óptimo na cama: fode em dois minutos, dói menos do que uma picada de mosca. E quando não está na cama não se vê, não se ouve, não se cheira”. E tem um grupo de amantes (não sei se “grupo” é o termo correcto: não se conhecem, se bem alguns suspeitem da existência de outros; e mudam com a frequência de uma lua bêbeda) que ela manipula a seu bel-prazer.
Aos filhos, Luísa tenta inculcar os seus valores: liberdade, independência, indiferença à doxa, impermeabilidade ao dogma – um conjunto de valores aos quais ela chama “soberania”. “Ser bem-educado”, dizia-lhes muitas vezes, “não é obedecer cegamente às regras da boa educação; é conhecê-las”; ou: “temos que conhecer as regras para as podermos desrespeitar: é essa a diferença entre a independência e a selvajaria”. Quando o filho começou a dar os primeiros sinais de rebeldia: “ser rebelde por sistema é uma servidão, Pedro”.
Luísa vê o mundo como um inelutável conjunto de prisões; ser livre (ou "soberano", como ela diz) é escolhê-las, poder entrar e sair delas quando e como lhe apetece.
De todos os seus amantes, tem especial carinho por Ricardo, um músico cego que ela conheceu num concerto. Ricardo é um excelente pianista, cantor, compositor. É cego mas não é dependente - por isso Luísa se sentiu atraída por ele. Tem um sentido de humor devastador, sarcástico. Quando lhe falam em Stevie Wonder ele simula uma modéstia que não sente e diz "não, acho que sou mais como Snooks Eaglin". Como ninguém sabe quem diabo é (ou foi) Snooks Eaglin as pessoas afastam-se constrangidas. Ricardo e Luísa riem-se: há entre eles uma cumplicidade que dispensa a vista e as palavras. Ricardo sabe que não é Stevie Wonder, e que a música que faz é boa. Vive bem nesse intervalo: vive bem consigo próprio, vive bem com a cegueira. É casado com uma senhora a quem chama, depreciativamente, "a minha missionária". O casamento mantém-se por inércia e por má-consciência de ambos: quando se casaram ele queria ajuda e ela queria ajudá-lo; ora a ajuda - tenha ela a forma que tiver - é a pior das razões para um casamento.
Cada um deles aprendeu a viver primeiro sem o apoio do outro, depois sem o outro. Ora para Filipa ajudar Ricardo era uma poderosa forma de auto-ajuda. E enganosa, também, mas isso fica para depois.
(cont.)
Mas enfim, é ao pôr-do-sol que este conto começa. Com uma senhora sentada à beira-mar e voltada para poente. É alta (o suficiente pelo menos para o vermos com ela sentada); elegante, bonita – cabelos e olhos castanhos e grandes, magra mas não magricela, seios grandes, redondos (mais tarde saberemos que os mamilos também: grandes, redondos, escuros, duros).
A senhora está sentada à beira-mar, voltada para poente. Onde? Talvez nas falésias das Azenhas do Mar, no cabo da Roca, na Ericeira? Escolho as Azenhas. Como se chama? É difícil dar um nome às personagens femininas: gosto de todos os nomes de mulher: Ana, Paula, Margarida, Filipa, Susana, Helena, Sandra, Rita, Rosa. Não sei; talvez Luísa. Vá, fica Luísa.
Sabemos agora que a senhora sentada num muro ao pôr-do-sol, face ao mar e ao poente se chama Luísa. Sabemos que é bonita, elegante e tem olhos grandes: podemos imaginá-los a receber aquela luz toda, espessa porque carregada de humidade; e a devolvê-la, como se fossem eles, os olhos, a iluminar a cena, e não o contrário. Talvez.
Que idade tem? Quem é? De onde vem? Porque está ali, sentada no topo de uma falésia? É feliz? Tem pais, irmãos, um marido? Será sensual? Pouco me interessa, para dizer a verdade. Mas imagino que quem esteja a ler queira saber: Luísa tem 38 anos; dois filhos – um rapaz de 13 e uma rapariga de 11; é casada – conheceu o marido no liceu e casou-se ainda não tinha acabado o curso de medicina, “para arrumar esse assunto”; é uma senhora da média-alta burguesia, médica, filha e neta de médicos. O avô fez qualquer coisa em prol da saúde no nosso país – talvez tenha inventado uma vacina, não sei; ou a tenha tornado obrigatória, ou construído um sanatório na montanha. Pouco importa: o avô só serve para mostrar, ocasionalmente (ou seja, quando se aborrece num jantar de novos-ricos, ou novos-pobres, que ainda são piores), que tem pergaminhos na família. E sim, é sensual, por constituição e educação. Luísa seguiu à letra o conselho da mãe: “nada se leva desta vida, filha, senão duas ou três quecas bem sentidas. E não te fiques por “duas ou três”: todas as que deres serão poucas”.
Luísa fez o que a mãe lhe dizia. Casou-se com o primeiro palerma que lho pediu – um velho colega do liceu e mais tarde da faculdade, herdeiro de uma fortuna do Alentejo, “que”, explicava ela, “é óptimo na cama: fode em dois minutos, dói menos do que uma picada de mosca. E quando não está na cama não se vê, não se ouve, não se cheira”. E tem um grupo de amantes (não sei se “grupo” é o termo correcto: não se conhecem, se bem alguns suspeitem da existência de outros; e mudam com a frequência de uma lua bêbeda) que ela manipula a seu bel-prazer.
Aos filhos, Luísa tenta inculcar os seus valores: liberdade, independência, indiferença à doxa, impermeabilidade ao dogma – um conjunto de valores aos quais ela chama “soberania”. “Ser bem-educado”, dizia-lhes muitas vezes, “não é obedecer cegamente às regras da boa educação; é conhecê-las”; ou: “temos que conhecer as regras para as podermos desrespeitar: é essa a diferença entre a independência e a selvajaria”. Quando o filho começou a dar os primeiros sinais de rebeldia: “ser rebelde por sistema é uma servidão, Pedro”.
Luísa vê o mundo como um inelutável conjunto de prisões; ser livre (ou "soberano", como ela diz) é escolhê-las, poder entrar e sair delas quando e como lhe apetece.
De todos os seus amantes, tem especial carinho por Ricardo, um músico cego que ela conheceu num concerto. Ricardo é um excelente pianista, cantor, compositor. É cego mas não é dependente - por isso Luísa se sentiu atraída por ele. Tem um sentido de humor devastador, sarcástico. Quando lhe falam em Stevie Wonder ele simula uma modéstia que não sente e diz "não, acho que sou mais como Snooks Eaglin". Como ninguém sabe quem diabo é (ou foi) Snooks Eaglin as pessoas afastam-se constrangidas. Ricardo e Luísa riem-se: há entre eles uma cumplicidade que dispensa a vista e as palavras. Ricardo sabe que não é Stevie Wonder, e que a música que faz é boa. Vive bem nesse intervalo: vive bem consigo próprio, vive bem com a cegueira. É casado com uma senhora a quem chama, depreciativamente, "a minha missionária". O casamento mantém-se por inércia e por má-consciência de ambos: quando se casaram ele queria ajuda e ela queria ajudá-lo; ora a ajuda - tenha ela a forma que tiver - é a pior das razões para um casamento.
Cada um deles aprendeu a viver primeiro sem o apoio do outro, depois sem o outro. Ora para Filipa ajudar Ricardo era uma poderosa forma de auto-ajuda. E enganosa, também, mas isso fica para depois.
(cont.)
Luís, com esse título, não resisto, naturalmente, a um comentário. Muito interessante este começo. Tenho algumas afinidades com a heroína – presumo que qualquer mulher terá – mas gostei, sobretudo, da sua visão da vida e das prisões. Concordo que ser livre é poder entrar e sair delas quando apetece, e por isso penso que a liberdade é, em qualquer acepção, limitadíssima, porque, mesmo apetecendo, há demasiadas prisões em que não se consegue entrar e ainda mais de que não se consegue sair. Estou com curiosidade na continuação… - espero que, para as suas fiéis leitoras, reserve um final feliz!… ;-D
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