Chama-se Paula, tem 40 e poucos anos e o que mais me marca nela é nunca por nunca ser se definir sozinha. Paula não existe sem os outros - outros num sentido muito restrito: família e os poucos amigos próximos.
Paula é incapaz de dizer "estou a jantar": diz "estou a jantar com o meu pai". "Vou ao Porto": "vou ao Porto com o João (o namorado, um estudante de engenharia bastante simpático e quase vinte anos mais novo do que ela)". "Estou em casa": "estou em casa; amanhã chega a Rita (uma amiga que trabalha numa organizaçao internacional)". E assim por diante. Ao princípio parecia-me que ela não existia sem os outros, o que me surpreendia porque conhecia o seu gosto por longos passeios solitários, a pé ou a cavalo (é uma cavaleira fina, intutiva, subtil, que num piscar de olhos põe o mais reticente dos cavalos na mão).
Depois habituei-me: boa companhia, simpática, cordial (e bonita, o que não estraga nada).
- Olá, estás bom? Amanhã chega o meu pai.
- Óptimo, obrigado. Fico muito contente.
- Pois. O João vai agora para o Alentejo. Queres vir almoçar comigo?
Eu já sabia que esse almoço ia ser incluído na próxima conversa telefónica, mas não me importava.
- Vamos.
Levei muito tempo a percebê-la: porque raio uma mulher bonita, profissional reconhecida (tinha uma empresa de orgaização de eventos que facturava mais do que ela queria, e muito mais do que precisava), independente, precisava de estar sempre a referir-se a outrém?
Um dia estava no picadeiro a vê-la montar e a explicação entrou-me pelos olhos. Paula estava espantada com a sua vida, e precisava de ter alguém ao lado (mesmo que só pela menção que lhe fazia) para ter a certeza de que tudo aquilo era real. De certa forma tinha razão: nascida numa família rica, conservadora, de banqueiros e latifundiários, fugira de casa aos dezanove anos para casar com um músico sem cheta. Quinze ou dezasseis anos depois divorciara-se, porque estava farta (embora não o reconhecesse: dizia que ele a enganava, o que só muito parcialmente era verdade); ajudara o marido a tornar-se um nome incontornável na música do nosso país, e pouco mais havia que fazer. Nunca reatara os laços com a família, mas aproveitou-se dos contactos que tinha no meio para criar e desenvolver a tal empresa; um dia conheceu um jovem estudante que lá fora para um trabalho de três ou quatro dias e "alugou-o", como ela dizia. Quando descobriu que o rapaz não se deixava "alugar" apaixonou-se por ele.
Conhecia meio mundo - geográfica e metaforicamente. E estava perpetuamente espantada: conseguira fugir a um destino de "freira, ou equivalente". Mas precisava de alguém: gostava de estar sozinha fisicamente, mas mentalmente era-lhe impossível. No fundo, ao contrário do que ela pensava, não fora ela que vivera a sua vida: vivera-a permanentemente contra ou com alguém. Daí as referências constantes a com quem estava, quem ia ou vinha.
Paula é incapaz de dizer "estou a jantar": diz "estou a jantar com o meu pai". "Vou ao Porto": "vou ao Porto com o João (o namorado, um estudante de engenharia bastante simpático e quase vinte anos mais novo do que ela)". "Estou em casa": "estou em casa; amanhã chega a Rita (uma amiga que trabalha numa organizaçao internacional)". E assim por diante. Ao princípio parecia-me que ela não existia sem os outros, o que me surpreendia porque conhecia o seu gosto por longos passeios solitários, a pé ou a cavalo (é uma cavaleira fina, intutiva, subtil, que num piscar de olhos põe o mais reticente dos cavalos na mão).
Depois habituei-me: boa companhia, simpática, cordial (e bonita, o que não estraga nada).
- Olá, estás bom? Amanhã chega o meu pai.
- Óptimo, obrigado. Fico muito contente.
- Pois. O João vai agora para o Alentejo. Queres vir almoçar comigo?
Eu já sabia que esse almoço ia ser incluído na próxima conversa telefónica, mas não me importava.
- Vamos.
Levei muito tempo a percebê-la: porque raio uma mulher bonita, profissional reconhecida (tinha uma empresa de orgaização de eventos que facturava mais do que ela queria, e muito mais do que precisava), independente, precisava de estar sempre a referir-se a outrém?
Um dia estava no picadeiro a vê-la montar e a explicação entrou-me pelos olhos. Paula estava espantada com a sua vida, e precisava de ter alguém ao lado (mesmo que só pela menção que lhe fazia) para ter a certeza de que tudo aquilo era real. De certa forma tinha razão: nascida numa família rica, conservadora, de banqueiros e latifundiários, fugira de casa aos dezanove anos para casar com um músico sem cheta. Quinze ou dezasseis anos depois divorciara-se, porque estava farta (embora não o reconhecesse: dizia que ele a enganava, o que só muito parcialmente era verdade); ajudara o marido a tornar-se um nome incontornável na música do nosso país, e pouco mais havia que fazer. Nunca reatara os laços com a família, mas aproveitou-se dos contactos que tinha no meio para criar e desenvolver a tal empresa; um dia conheceu um jovem estudante que lá fora para um trabalho de três ou quatro dias e "alugou-o", como ela dizia. Quando descobriu que o rapaz não se deixava "alugar" apaixonou-se por ele.
Conhecia meio mundo - geográfica e metaforicamente. E estava perpetuamente espantada: conseguira fugir a um destino de "freira, ou equivalente". Mas precisava de alguém: gostava de estar sozinha fisicamente, mas mentalmente era-lhe impossível. No fundo, ao contrário do que ela pensava, não fora ela que vivera a sua vida: vivera-a permanentemente contra ou com alguém. Daí as referências constantes a com quem estava, quem ia ou vinha.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.