Ninguém aguenta um homem infeliz se ele não tiver dinheiro; ou pobre, se não for feliz. Ninguém: nem as mulheres, nem os amigos - para quem é fácil resolver o assunto: basta afastarem-se - nem o próprio, a menos que se refugie na loucura ou no suicídio. (Este, deve dizer-se, é relativamente simples. Já aquela tem duas formas possíveis, e só duas, para ser um refúgio: esquizofrenia - uma espécie de hiper-lucidez; e a esperança - hipo-lucidez; nenhuma das outras patologias, clínicas ou supostas, servirá.)
Não é portanto de estranhar que as mulheres entrem e saiam da minha vida ao ritmo das portas giratórias do respectivo armazém de paciência, ou clarividência; normalmente curto. Sendo triste por não ter dinheiro, e não tendo dinheiro por não saber (e não por não querer) fui perdendo amigos, mulheres, família. Sinto-me na vida como um apresentador de televisão gago: o problema não é a substância, mas a forma; a qual assusta as e os mais valentes, perseverantes ou simplesmente carentes.
Por isso quando Myrna entrou na minha vida pensei que dela sairia tão depressa quanto as outras; o que me entristecia ainda mais, por antecipação: por um lado porque ela era bonita, com uns grandes olhos castanhos encavados na face como se viessem directamente da alma, e por outro porque me estimulava. Não me deixava comprazer-me na minha infelicidade, esponjar-me nela como um indiano no Ganges ou um turista americano no sol de uma praia das Bahamas. Obrigava-me a reagir, a pensar antes de falar, a olhar para o exterior da muralha que a tristeza constrói à nossa volta.
Myrna era alta, magra, tinha os cabelos lisos pelo meio do pescoço e uns olhos - já o disse - que lhe vinham directamente das profundezas; fazia amor como mais nenhuma mulher que tivesse conhecido: como um pneu a esvaziar-se lentamente - e quando dava o suspiro final parecia o último sopro de vento de um dia de vendaval (digo isto sem nenhuma espécie de segundo sentido; era realmente agradável amá-la). Não era propriamente minha namorada, ao contrário do que eu dizia e queria e pensava e desejava: era casada com um idiota qualquer que tinha feito uma fortuna nos barcos à vela, não sei se a vendê-los, a explorá-los ou a navegá-los. Pouco importa: pelo que me contava dele devia realmente ser um estúpido insensível e desinteressante.
Não me mandou passear ao fim de dois meses, nem três. Ficámos juntos (enfim, se "juntos" for o termo adequado) quase dois anos. Vivo num tugúrio que alugo a uma velha infecta: quarto e casa de banho independentes, no centro de Lisboa. Sou, para que saibam, especialista em gafanhotos (ou ortópteros em geral); e tenho um projecto para o qual vivo há anos e anos: fazer uma criação de gafanhotos em Portugal. Escusado será dizer que não consigo, claro. Já não têm conta os financiadores, capitais de risco, business angels, apoios ao investimento que abordei: desde que lhes falo em gafanhotos é com dificuldade que escondem o sorriso, e com uma facilidade desconcertante que me põem a andar.
As pessoas não conhecem o potencial económico dos gafanhotos: desde investigação científica até à exportação com fins culinários (há países nos quais os gafanhotos são tão apreciados como os camarões em Portugal), passando pelos estúdios de cinema, as aplicações de uma colónia de gafanhotos são inúmeras. Enfim, pouco importa. A verdade é que Myrna ficou comigo quase dois anos - eu chamo àquilo que nós vivemos "ficar comigo", "namorar", "andar com". Ela não. Pouco importa. Adiante.
Ontem estava a chover desalmadamente em Lisboa. Estávamos em casa dela: o parvalhão do marido estava algures no Mediterrâneo, ou nas Caraíbas numa regata qualquer, e as filhas (tinha duas, de dez e doze anos) em casa de uma amiga. Chuva, frio, vento: um tempo para tudo menos para gafanhotos, que é a única coisa na qual consigo pensar depois de Myrna. Tínhamos acendido a lareira - o que me parece um erro, por causa do dióxido de carbono, mas enfim: ela não liga peva ao ambiente - e eu bebia um rum desses que o gajo trazia das viagens (não posso com o homem: ainda estou para perceber como raio se consegue interessar investidores e ganhar dinheiro com barcos à vela, e com gafanhotos nada: só se apanham bonés, se me permitem a expressão). Enfim: estávamos em casa dela, eu sentado no sofá grande da sala e ela no pequeno, quando - finalmente (eu já pressentia que isso estava para acontecer, não me perguntem como) - me disse que queria acabar. Acabar. Isto foi ontem, e eu não sei ainda como definir os termos efectivamente utilizados. Acabar, creio.
"A tristeza é contagiosa", disse-me. Foi de resto a única explicação que me deu, depois de me ter pegado no copo de rum e me ter pedido - delicadamente, devo dizer - para me ir embora. "A tristeza é contagiosa".
Eu fui, claro - se há coisa que detesto mais do que uma ruptura é uma ruptura com gritos, lágrimas e ranho. Ainda lhe gritei, já do outro lado da porta: "a felicidade também. Basta amar". Mas ela ou não ouviu, ou não respondeu.
Não é portanto de estranhar que as mulheres entrem e saiam da minha vida ao ritmo das portas giratórias do respectivo armazém de paciência, ou clarividência; normalmente curto. Sendo triste por não ter dinheiro, e não tendo dinheiro por não saber (e não por não querer) fui perdendo amigos, mulheres, família. Sinto-me na vida como um apresentador de televisão gago: o problema não é a substância, mas a forma; a qual assusta as e os mais valentes, perseverantes ou simplesmente carentes.
Por isso quando Myrna entrou na minha vida pensei que dela sairia tão depressa quanto as outras; o que me entristecia ainda mais, por antecipação: por um lado porque ela era bonita, com uns grandes olhos castanhos encavados na face como se viessem directamente da alma, e por outro porque me estimulava. Não me deixava comprazer-me na minha infelicidade, esponjar-me nela como um indiano no Ganges ou um turista americano no sol de uma praia das Bahamas. Obrigava-me a reagir, a pensar antes de falar, a olhar para o exterior da muralha que a tristeza constrói à nossa volta.
Myrna era alta, magra, tinha os cabelos lisos pelo meio do pescoço e uns olhos - já o disse - que lhe vinham directamente das profundezas; fazia amor como mais nenhuma mulher que tivesse conhecido: como um pneu a esvaziar-se lentamente - e quando dava o suspiro final parecia o último sopro de vento de um dia de vendaval (digo isto sem nenhuma espécie de segundo sentido; era realmente agradável amá-la). Não era propriamente minha namorada, ao contrário do que eu dizia e queria e pensava e desejava: era casada com um idiota qualquer que tinha feito uma fortuna nos barcos à vela, não sei se a vendê-los, a explorá-los ou a navegá-los. Pouco importa: pelo que me contava dele devia realmente ser um estúpido insensível e desinteressante.
Não me mandou passear ao fim de dois meses, nem três. Ficámos juntos (enfim, se "juntos" for o termo adequado) quase dois anos. Vivo num tugúrio que alugo a uma velha infecta: quarto e casa de banho independentes, no centro de Lisboa. Sou, para que saibam, especialista em gafanhotos (ou ortópteros em geral); e tenho um projecto para o qual vivo há anos e anos: fazer uma criação de gafanhotos em Portugal. Escusado será dizer que não consigo, claro. Já não têm conta os financiadores, capitais de risco, business angels, apoios ao investimento que abordei: desde que lhes falo em gafanhotos é com dificuldade que escondem o sorriso, e com uma facilidade desconcertante que me põem a andar.
As pessoas não conhecem o potencial económico dos gafanhotos: desde investigação científica até à exportação com fins culinários (há países nos quais os gafanhotos são tão apreciados como os camarões em Portugal), passando pelos estúdios de cinema, as aplicações de uma colónia de gafanhotos são inúmeras. Enfim, pouco importa. A verdade é que Myrna ficou comigo quase dois anos - eu chamo àquilo que nós vivemos "ficar comigo", "namorar", "andar com". Ela não. Pouco importa. Adiante.
Ontem estava a chover desalmadamente em Lisboa. Estávamos em casa dela: o parvalhão do marido estava algures no Mediterrâneo, ou nas Caraíbas numa regata qualquer, e as filhas (tinha duas, de dez e doze anos) em casa de uma amiga. Chuva, frio, vento: um tempo para tudo menos para gafanhotos, que é a única coisa na qual consigo pensar depois de Myrna. Tínhamos acendido a lareira - o que me parece um erro, por causa do dióxido de carbono, mas enfim: ela não liga peva ao ambiente - e eu bebia um rum desses que o gajo trazia das viagens (não posso com o homem: ainda estou para perceber como raio se consegue interessar investidores e ganhar dinheiro com barcos à vela, e com gafanhotos nada: só se apanham bonés, se me permitem a expressão). Enfim: estávamos em casa dela, eu sentado no sofá grande da sala e ela no pequeno, quando - finalmente (eu já pressentia que isso estava para acontecer, não me perguntem como) - me disse que queria acabar. Acabar. Isto foi ontem, e eu não sei ainda como definir os termos efectivamente utilizados. Acabar, creio.
"A tristeza é contagiosa", disse-me. Foi de resto a única explicação que me deu, depois de me ter pegado no copo de rum e me ter pedido - delicadamente, devo dizer - para me ir embora. "A tristeza é contagiosa".
Eu fui, claro - se há coisa que detesto mais do que uma ruptura é uma ruptura com gritos, lágrimas e ranho. Ainda lhe gritei, já do outro lado da porta: "a felicidade também. Basta amar". Mas ela ou não ouviu, ou não respondeu.
(Para a RC)
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