28.2.10

O futuro da felicidade

Redondas de formas e voluptuosas de ideias: é assim que gosto das mulheres. Não é que o meu gosto seja muito importante, apresso-me a esclarecer - tenho claro certos limites, mas de uma forma geral até sou bastante amplo. Enfim, já lá vamos. O que interessa por agora é a história da Raquel, uma miúda gira que corresponde perfeitamente aos desiderata acima. Quando ela me começou a correr atrás - aquilo era convites para o teatro, convites para lanches na Versailles, convites para andar no barco do irmão (um Amel 54 novo como um recém-nascido) - eu decidi que aquela era a sorte grande. Rica, redondinha, sensual e - isto só o descobri mais tarde, mas não resisto a dizê-lo já - culta e com um sentido de humor como eu nunca tinha visto numa mulher.

É preciso que saibam: vivo das mulheres. Como-as, dou-lhes carinho e atenção, faço-as sentir mulheres até aos tréfonds; tudo isto em regime de exclusividade, por três meses renováveis uma vez. Em troca elas pagam-me  a renda de casa (é uma maneira elegante de pôr a coisa, porque a casa é minha, herdada e paga há pelo menos quatro gerações), dão-me de comer e beber e, discretamente, deixam alguma coisa para os alfinetes. Além disso ainda lhes dou aulas de vela (a "renda de casa" vai parcialmente para pagar um 50' de regata desactualizado que comprei em Inglaterra por uma pechincha) e - isto nunca falha - reconstruo-lhes os egos partidos por amores infelizes, maridos voláteis, ou outra infelicidade qualquer do catálogo - as mulheres têm uma fonte inesgotável de maneiras de se sentirem infelizes, graças a Deus. Não sou barato, mas nunca tive reclamações. Até já maridos vieram agradecer-me o que lhes fiz pelas mulheres.

Quando os convites da Raquel começaram a aparecer vi que aquilo ia ser complicado: por um lado eu queria-a; por outro, era preciso explicar-lhe as condições. Normalmente nessa fase sou bastante directo. Não gosto de enganar as senhoras, e sei que a minha taxa de captação de clientela é de 10 a 12%. Não me apetece perder muito tempo (nem fazê-las perder) porque findos os seis meses contratuais não gosto de passar um grande intervalo à procura da próxima (verdade seja dita que ultimamente tenho mantido o ritmo de duas por ano sem problemas. Elas passam-se palavra umas às outras. E eu ao princípio pensava que ninguém sabia...).

Enfim, a verdade é que com aquele pedacinho de bomba morena resolvi fazer de outra forma e agi à maneira do pescador de big game fishing: ora toma lá um bocadinho de linha, ora dá cá outro um bocadinho maior. Quando me chegou à porta de casa já não tinha por onde escapar, a desgraçada: se lhe tivesse dito que queria um Porsche descapotável novo todos os meses ter-mo-ia dado. Fora isto, acho que fiz tudo by the book. Ela estava um destroço, quando chegou a mim - descobrira que o marido tinha outra mulher, de casa posta e filhos, e que só estava com ela por causa das aparências ("nem sequer é o dinheiro, percebes; ele também tem, e muito. É mesmo só as aparências", explicou-me um dia - se bem eu só agora perceba por é que ela preferia o dinheiro às aparências). E eu reconstruí-a. É-me fácil: sou naturalmente terno, e gosto do que faço. Sou atencioso, bem educado, penso nelas antes de pensar em mim  - em todo o lado, cama incluída. Gosto de cozinhar e como li dois ou três livros sei fingir que sou culto (não sou, mas elas também não, regra geral. E se por acaso me calha uma que o é, digo-lhe logo que sou um boçal que mal sabe ler e escrever - essas gostam de me "cultivar"). Finjo que gosto de música boa - tornei-me um especialista no Köln Concert e nas Vésperas de Rachmaninov, que sigo como se fosse uma música de filme quando estou a fazer amor - e escrevo-lhes cartas muito bonitas, cheias de sentimento e digressões pela pele e arredores. No fundo é fácil fazer uma mulher sentir-se querida e amada: basta fazer-lhe aquilo que gostaríamos que nos fizessem a nós. Infelizmente a mim ninguém faz por causa da linha de trabalho que escolhi; mas penso que há de certeza homens a quem as mulheres fazem sentir homem sem ser só com palavrões na cama (é um clássico, mas agora não vou elaborar).

Raquel fugiu à regra: apesar de absorvida pelos seus problemas conseguia pensar em mim. Andámos juntos mais de um ano. Ela não precisava de dar explicações ao marido, pelo que vinha frequentemente a minha casa. Descobriu-me a maior parte dos truques, mas ria com eles. Fazia-me felações como nem em África me fizeram, quando lá estive. Oferecia-me livros e lia-os comigo, à noite, antes, ou (quantas vezes) em vez do amor. Era uma marinheira de primeira: foi a única pessoa com quem eu podia ir deitar-me e deixar de quarto sem ter que acordar de quinze em quinze minutos (a certa altura comecei a organizar cruzeiros no "Altair" - Madeira, Marrocos, Açores -  e ela vinha comigo). Gostava de música - tinha uma cultura enciclopédica, que ia da ópera aos clássicos da pop, passando pelo jazz - e fez-me descobrir um mundo que me encanta (é a ela que devo a descoberta de Jeanne Lee, por exemplo).

Falhei numa coisa: amei-a. Amei-a sem jogo de palavras; não é uma metáfora. É mesmo assim: amei-a. De tal forma que quando ela me deixou nunca mais olhei para uma mulher com os mesmos olhos. Hoje vivo no meu barco, numa ilha das Caraíbas. Faço day charter e à noite trabalho num bar de praia. Tenho uma miúda de 17 anos (sim, eu sei; mas isto não é a Europa e eu faço por ela o que a Raquel fez por mim: educo-a e ensino-lhe não o que é o amor, mas o que pode, ou deve, ser). Penso nela todos os dias. Sei que se divorciou, arranjou outro gajo e casou-se de novo. Proibiu-me terminantemente de a contactar. Uma vez por ano deposita aquilo que para mim é uma pipa de massa numa conta, na qual não toco (mas isso ela não sabe. As minhas mensagens vêm todas devolvidas. Uma vez tentei reenviar-lhe o dinheiro, mas uma semana depois estava na conta outra vez). A referência da transferência é sempre a mesma: "Futuro da felicidade".

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