17.3.10

Diana (fragmento)

Na cidade há um cabaret chamado Moulin Rose. O nome diz tudo. A única mulher que lá entra é Diana,  uma polaca de cabelos quase brancos de tão claros e alta como uma queda de água. Tem olhos verdes, e faz amor com a seriedade que os eslavos põem em tudo o que fazem. Como se o mundo não suportasse uma gargalhada; ou um sorriso transformasse qualquer acto numa palhaçada.

Diana é grande e os seios em proporção. Começa por me acariciar com os bicos deles, apoiada nas mãos e nos joelhos; da cabeça vai descendo metódica, lenta, meticulosamente. Quando chega àquilo a que ela chama "o submarino" já ele, o submarino, está em posição de imersão urgente. "O submarino vai mergulhar no meio dos icebergs" - e  envolve-o com aquelas duas magníficas meias-luas alvas que de iceberg só tinham a cor. Depois continuava até ter o submarino na boca.

Sempre séria, sem o mais pequeno sorriso. Às vezes parecia-me que há uma placa de vidro entre nós, quando fazemos amor; não fosse a enorme ternura que põe em cada gesto, em cada acto, eu pensaria que ela se estava a aborrecer. Até que o momento de pôr o submarino na base chega e ela me diz "empurra-o bem, até ao fundo. Temos que o proteger dos ataques do exterior" e eu faço tudo o que posso para que ele lá fique muito tempo, muito fundo.

Diana é estudante de filosofia na Faculdade. Trabalha no Moulin Rose às quintas, sextas e sábados. O dono contratou-a por causa de um professor dela que queria seduzir. Não sei se conseguiu ou não; mas Diana está lá há mais de dois anos. Com o seu aspecto frio, distante, não incomoda a clientela; mas, como em todas as eslavas, por baixo daquela aparência escondia-se uma enorme frustração. "Nem para mim olham", queixava-se; "é como se não existisse".

Isso, e o facto de eu não ser ciumento. "Não penses que na faculdade não olham para mim"; ou "quando não estás, como faço?"; "Ora, colegas não te faltam com certeza, e todos morrem de vontade de te levar para a cama", respondia-lhe. "Como podes se tão presunçoso?" "Não sou". Eu estou a montar uma peça em Milão e viajo constantemente entre as duas cidades. Passo longos períodos fora. Diana diz-me que gosta mais de mim quando estou em Itália: "sinto-te simultaneamente mais forte e mais frágil. É por estares sem mim, ou por estares fora de casa?" "Não sei, Diana. E não me apercebo dessa mudança. Sinto-me o mesmo".

Sei que não sou. A verdade é que tenho mais vinte anos do que ela. Longe dela baixo as defesas, consciente ou inconscientemente. Não tenho nada que defender. Na verdade estou sempre à espera que ela me troque por um tipo mais bonito, mais magro ou mais rico ("podes escolher uma das três hipóteses, Diana, não precisam de vir todas juntas"); e quando estou longe não penso muito nisso.

Estou deitado, de costas. Diana está sentada por cima de mim, virada para os meus pés. Vejo o seu corpo subir e descer, muito devagar. Não lhe vejo a face, mas sei que tem os olhos fechados, a boca ligeiramente entreaberta. Quero tocar-lhe, mas só alcanço a sua cintura. Às vezes é o contrário: ela deitada, braços abertos, pernas bem afastadas; eu apoio-me nas mãos, e não nos cotovelos. Só a minha bacia se move. Vejo-lhe os cabelos espalhados pelo lençol, sinto-a vibrar como se estivesse um bocadinho de vento na praia e ela a tiritar de frio, mas lentamente; tudo é lento, sempre. Parece-me que todas as terminações nervosas do meu corpo, todas as sinapses, dendrites, neurónios, toda a dopamina e serotonina que produzo, tudo o que no meu corpo serve para transportar ou produzir sensações se concentra naquele pedaço de carne dura, encharcada de sangue e de desejo, de que sinto cada milímetro; e que o tempo não se mede em segundos, nem em minutos, mas em vidas.

Nunca nos tocamos muito enquanto a penetro; nada daqueles engalfinhamentos que eram a norma com A, ou as verdadeiras batalhas campais em que o amor com B se tornava. A nossa vida comum – enfim, comum não é o termo. Não moramos juntos – é igual: falamos muito, discutimos ideias, livros, filmes – mas sempre em pequenas pinceladas, frases que um observador externo pensaria não terem, ou estarem, num seguimento. Envolvi-me com ela há três anos. Ao princípio não acreditava muito que conseguisse passar mais do que os dois ou três meses que eram a média naqueles anos; mas a relação foi prosseguindo. Por vezes imaginava-me como um objecto deitado à água nas Canárias: se flutuar acabará por cehgar a uma ilha qualquer das Caraíbas, seja grande ou pequeno, tenha propulsão ou não. Via-nos como esse objecto: um dia chegaríamos a uma praia qualquer; um de nós deitar-se-ia e o outro far-lhe-ia amor. Depois levantar-nos-íamos os dois, dir-nos-íamos “adeus”, e adeus. Mas não foi assim que aconteceu: não chegámos a uma praia, e muito menos nos despedimos um do outro. Antes pelo contrário. Não estávamos à deriva numa corrente: ela pilotava a embarcação.

Tenho 45 anos, sou proprietário de um bar, e estou a abrir um novo em Milão. Foi assim que a conheci: ela veio pedir-me trabalho. Disse-lhe que não – na realidade precisava de alguém, mas ela provocou-me um desejo quase incontrolável desde que a vi e eu tenho por norma não tocar, nem sequer cobiçar, não desejar por actos omissões ou pensamentos uma empregada. Mas fiquei com o número de telefone dela e nessa noite convidei-a para jantar. Disse-me que não duas vezes; à terceira veio jantar, mas com a condição de que “não me passasse sequer pela cabeça ir para a cama com ela”. Respondi-lhe que não lhe podia prometer que não me passaria pela cabeça; mas que ela não o veria, se tal infeliz circunstância viesse a ocorrer. Vimo-nos durante cinco meses antes de eu a conseguir convencer a vir passar um fim-de-semana comigo a St. Tropez, a bordo de um iate de um amigo meu. Foi no camarote, mal tínhamos acabado de chegar, que fizemos amor pela primeira vez.

Lembro-me dos pormenores todos; lembro-me da primeira vez que ela me percorreu o corpo a tocar-me apenas com o bico dos seios; da primeira felação, que ela prolongou com breves beliscões na base da glande quando sentia que eu não conseguia controlar-me mais; da primeira vez que a possuí – ou ela me possuiu, mais verosimilmente; ou nos possuímos. Lembro-me de pensar que nunca, simultaneamente, tivera tanto prazer e tão pouco necessidade de o manifestar – talvez porque no amor me adapto à parceira; ou porque ela mo impôs, não sei.

Pouco sabia dela, então: era estudante; de filosofia; na Universidade local; pouco depois de me ter vindo bater à porta encontrara trabalho no “cabaret dos maricas” (era ela que assim o designava, mas só em privado. Em público dizia “dos gays”, ou “ dos homossexuais”); era de origem polaca; gostava de Nietzsche e dos niilistas por causa do “moralismo”. Durante os primeiros meses pouco mais soube do que isto – e pouco mais queria saber, admitidamente.

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