Foram meses febris, doridos, tensos, de indecisão, cansaço, angústia e dúvidas. Não sabia o que fazer, para onde ir - e muito menos, claro, como. Olhava para a frente e via uma parede monstruosa, rugosa, de uma cor que não sabia definir mas era agressiva, hostil; para trás um buraco negro - nado do que fora ou fizera parecia ter-me levado ali. Os meus dias eram passados em longas caminhadas pela cidade, chovesse ou fizesse sol.
Um dia encontrei Liza, uma canadiana alta e morena, de grandes olhos verdes, que morava em Portugal desde a adolescência. Era mulher de um amigo meu; já não nos víamos havia muito tempo. Teve de me chamar duas ou três vezes para eu a ouvir; demorei algum tempo a reconhecê-la. Estávamos à beira do Tejo, um fim de dia de inverno. Foi como se a tivesse visto pela primeira vez: estava expansiva, sorridente, muito diferente da mulher contida, quase reprimida, sarcástica (mas não irónica) de que me lembrava. Desafiou-me para um café; disse-lhe que sim mecanicamente. Sentámo-nos numa das esplanadas, essas coisas de moda em que até as empregadas de mesa me fazem sentir um matarruane de visita à cidade.
Não sei se já vos aconteceu: o dia terminava no Tejo como se o sol resistisse e não quisesse ir para debaixo de água, para usar a expressão dos marinheiros; tudo parece suspenso dessa luta: as nuvens, a luz, inevitavelmente; mas também os sentimentos, as emoções, as recordações: como se esperassem o resultado do match para se definirem. Tudo fica cor-de-laranja, denso, imóvel. Liza falava, mas as suas palavras chegavam-me entrecortadas: separar-se. O filho ficar com. No trabalho. Ainda tens o restaurante? Teve de repetir a pergunta; sim, ainda. Mas este ano tinha sido péssimo: crise. Imaginação. Não saber. Apercebi-me de que lhe falava como a ouvia: aos soluços, sons dispersos cujo sentido só mais tarde se reconstituía no meu cérebro.
Não via nada: os olhos dela, verdes e laranja; nem os cabelos, castanhos e laranja; nem os dentes, brancos e grandes (e laranja, claro. A luz do fim da tarde é sólida). Liza fora modelo, antes de casar, e depois. Era extremamente complicada com a comida, com a roupa, com a educação dos filhos, com as maneiras à mesa. Falava um português perfeito. Tinha dois filhos, ou três. Não me lembrava, nem tinha vontade de fazer muito esforço para me lembrar.
Pouco importa. Tem uns braços longos com os quais gesticula muito; e eu agora não sei o que fazer com ela. Podia pô-la na cama, claro; mas estou farto de mulheres na cama. Ou num automóvel parado, frente ao Tejo, num dia de chuva. Mas isso é melhor num filme - Trintignant e Jacqueline Bisset, por exemplo a falarem de umas férias que fizeram juntos em St. Jean de Luz (ela tinha voado de New York para estar com ele). Não. Ou então no tal carro num dia de chuva mas na autoestrada. Está sozinha; vai ter comigo - decidiu finalmente deixar o marido. Não. Cheira a wishful thinking. E porque raio de carga de água teria que se pôr na autoestrada? Qual? A de Cascais? Não. A de Évora. Mas não porque deixou o marido. Ainda é muito cedo para isso. Vai apanhar o avião e vem ter comigo a Cabo Verde, onde estou a passar férias. Não, é a mesma coisa. Parece que não penso em mais nada: deixa o marido. Será que ela quer deixar o marido? Se sim, porquê? Bom, não são precisas razões: o amor acaba-se, como as velas ou a água no frigorífico. Pouco há a fazer - essa treta de revista feminina "como manter o amor aceso - compre lingerie nova pelo menos uma vez por semana" não passa disso mesmo: treta. E o que acontece depois de o amor acabar? Vai cada um para seu lado e nunca mais se falam. Não. Acho estúpido; porque não se falariam? Porque não ficarem amigos? Isso só nos contos de fadas. está bem. Mas podem pelo menos falar-se, não? Escrever-se, sei lá. Não.
Liza está num carro, sim; e num dia de chuva. Não vai sozinha: eu vou com ela. Diz:
- Quero deixar o meu marido.
- É uma asneira - respondo.
- Porquê?
- Porque não ganhas nada com isso: não me vais ganhar a mim; não vais ganhar liberdade nenhuma; vais sair da estante "mulheres casadas" para a de "mulheres divorciadas". E nada vai mudar radicalmente na tua vida.
- Pelo menos deixarei de mentir.
- Nos primeiros seis meses.
Disse ao marido que ia a França para um Congresso, o que é verdade. Só não lhe disse que eu ia com ela. Pelo meu lado não havia problema: há muito tempo que não o via. Era um dos meus melhores amigos. Depois perdemo-nos de vista. A amizade é como o amor, excepto que não se substitui. Isto é: quando um amor acaba encontra-se outro; quando uma amizade acaba não se encontra outra. Não sei porquê. Os amigos perdem-se como pétalas de uma flor; os amores são como fruta numa árvore. Ou num cesto, depois do jantar. Enfim: há muito tempo que não via o Pedro; e agora vou com a mulher dele a panhar o avião para Paris. Tento convencê-la a não se separar - há coisas que ficam de uma amizade. Ele gosta dela, ou pelo menos gostava.
Quando chegámos comecei por me esquecer da minha bagagem no tapete do aeroporto. Nunca levo bagagem de porão, e desta vez levei - uma garrafa de vinho para um amigo obrigou-me a um saco registado. Só descobri quando cheguei ao hotel. Tive que me meter num táxi, depois de ter perdido um quarto de hora à procura do número certo e de lhes telefonar. Não queria que destruíssem o raio da garrafa, nem as coisas que levava lá dentro. Liza reagiu mal; perguntou-me onde tinha eu a cabeça. "Nas tuas mamas, nas tuas mãos, no teu ventre, nas tuas coxas, nos teus lábios".
- E que tal "no teu espírito, na tua inteligência, no teu humor"?
- Seria uma mentira.
- Ao menos dizes a verdade.
Digo? Não sei. Neste caso é fácil, claro. Sei que Liza não se magoa com esta resposta; e quero encorajá-la a manter o marido. Mas se eu mentisse, em vez de dizer a verdade? Se eu dissesse:
- Sabes perfeitamente que quando penso em ti penso em tudo de ti.
Que diria Liza? É uma mulher inteligente: não acreditaria. Ou: é sensual e diria "que pena. Neste momento estou muito mais voltada para as mamas do que para o Le Monde" - eu tinha comprado o jornal no aeroporto. Ou: sentia-se culpada e responderia com um sorriso neutro, silencioso (há sorrisos silenciosos. Não sei explicar como são).
Enfim, pode estabelecer-se que Liza não está contente; que não o exterioriza muito. Provavelmente vai deitar-se na banheira com um whisky e o jornal. Eu volto ao aeroporto, onde os trâmites demoram séculos. Consigo recuperar a mala e volto para o hotel.
Aqui a vontade é dizer "Liza não estava. Deixou uma nota - volto para casa. Ou - fui passear. Encontramo-nos às nove no hall para jantar. Ou - o Pedro telefonou. Está triste. Acho que deve sentir que alguma coisa se passa". Mas estava; na cama a dormir, nua como sempre dorme. Dispo-me e deito-me encostado a ela. "Amo-te", diz-me. "Queria zangar-me contigo. Deixar de te falar, de pensar em ti; serias como uma nuvem que passou e ocultou o sol e se foi embora e o sol voltou. Não é isso que quero. Amo-te".
Não sei o que é o amor, já por aqui muitas vezes o tenho dito. Mas sei o que é não ser amado. E isso não quero mais, eu tão pouco. Encosto-me a ela e digo-lhe "amo-te". Amamo-nos. Vamos jantar. Amanhã levo-a ao restaurante do Jean, no Boulevard Edgar Quinet. Chama-se "Maintenant". Vou comprar um anel sem ela ver e oferecer-lho-ei. Se ela vier, claro.
Um dia encontrei Liza, uma canadiana alta e morena, de grandes olhos verdes, que morava em Portugal desde a adolescência. Era mulher de um amigo meu; já não nos víamos havia muito tempo. Teve de me chamar duas ou três vezes para eu a ouvir; demorei algum tempo a reconhecê-la. Estávamos à beira do Tejo, um fim de dia de inverno. Foi como se a tivesse visto pela primeira vez: estava expansiva, sorridente, muito diferente da mulher contida, quase reprimida, sarcástica (mas não irónica) de que me lembrava. Desafiou-me para um café; disse-lhe que sim mecanicamente. Sentámo-nos numa das esplanadas, essas coisas de moda em que até as empregadas de mesa me fazem sentir um matarruane de visita à cidade.
Não sei se já vos aconteceu: o dia terminava no Tejo como se o sol resistisse e não quisesse ir para debaixo de água, para usar a expressão dos marinheiros; tudo parece suspenso dessa luta: as nuvens, a luz, inevitavelmente; mas também os sentimentos, as emoções, as recordações: como se esperassem o resultado do match para se definirem. Tudo fica cor-de-laranja, denso, imóvel. Liza falava, mas as suas palavras chegavam-me entrecortadas: separar-se. O filho ficar com. No trabalho. Ainda tens o restaurante? Teve de repetir a pergunta; sim, ainda. Mas este ano tinha sido péssimo: crise. Imaginação. Não saber. Apercebi-me de que lhe falava como a ouvia: aos soluços, sons dispersos cujo sentido só mais tarde se reconstituía no meu cérebro.
Não via nada: os olhos dela, verdes e laranja; nem os cabelos, castanhos e laranja; nem os dentes, brancos e grandes (e laranja, claro. A luz do fim da tarde é sólida). Liza fora modelo, antes de casar, e depois. Era extremamente complicada com a comida, com a roupa, com a educação dos filhos, com as maneiras à mesa. Falava um português perfeito. Tinha dois filhos, ou três. Não me lembrava, nem tinha vontade de fazer muito esforço para me lembrar.
Pouco importa. Tem uns braços longos com os quais gesticula muito; e eu agora não sei o que fazer com ela. Podia pô-la na cama, claro; mas estou farto de mulheres na cama. Ou num automóvel parado, frente ao Tejo, num dia de chuva. Mas isso é melhor num filme - Trintignant e Jacqueline Bisset, por exemplo a falarem de umas férias que fizeram juntos em St. Jean de Luz (ela tinha voado de New York para estar com ele). Não. Ou então no tal carro num dia de chuva mas na autoestrada. Está sozinha; vai ter comigo - decidiu finalmente deixar o marido. Não. Cheira a wishful thinking. E porque raio de carga de água teria que se pôr na autoestrada? Qual? A de Cascais? Não. A de Évora. Mas não porque deixou o marido. Ainda é muito cedo para isso. Vai apanhar o avião e vem ter comigo a Cabo Verde, onde estou a passar férias. Não, é a mesma coisa. Parece que não penso em mais nada: deixa o marido. Será que ela quer deixar o marido? Se sim, porquê? Bom, não são precisas razões: o amor acaba-se, como as velas ou a água no frigorífico. Pouco há a fazer - essa treta de revista feminina "como manter o amor aceso - compre lingerie nova pelo menos uma vez por semana" não passa disso mesmo: treta. E o que acontece depois de o amor acabar? Vai cada um para seu lado e nunca mais se falam. Não. Acho estúpido; porque não se falariam? Porque não ficarem amigos? Isso só nos contos de fadas. está bem. Mas podem pelo menos falar-se, não? Escrever-se, sei lá. Não.
Liza está num carro, sim; e num dia de chuva. Não vai sozinha: eu vou com ela. Diz:
- Quero deixar o meu marido.
- É uma asneira - respondo.
- Porquê?
- Porque não ganhas nada com isso: não me vais ganhar a mim; não vais ganhar liberdade nenhuma; vais sair da estante "mulheres casadas" para a de "mulheres divorciadas". E nada vai mudar radicalmente na tua vida.
- Pelo menos deixarei de mentir.
- Nos primeiros seis meses.
Disse ao marido que ia a França para um Congresso, o que é verdade. Só não lhe disse que eu ia com ela. Pelo meu lado não havia problema: há muito tempo que não o via. Era um dos meus melhores amigos. Depois perdemo-nos de vista. A amizade é como o amor, excepto que não se substitui. Isto é: quando um amor acaba encontra-se outro; quando uma amizade acaba não se encontra outra. Não sei porquê. Os amigos perdem-se como pétalas de uma flor; os amores são como fruta numa árvore. Ou num cesto, depois do jantar. Enfim: há muito tempo que não via o Pedro; e agora vou com a mulher dele a panhar o avião para Paris. Tento convencê-la a não se separar - há coisas que ficam de uma amizade. Ele gosta dela, ou pelo menos gostava.
Quando chegámos comecei por me esquecer da minha bagagem no tapete do aeroporto. Nunca levo bagagem de porão, e desta vez levei - uma garrafa de vinho para um amigo obrigou-me a um saco registado. Só descobri quando cheguei ao hotel. Tive que me meter num táxi, depois de ter perdido um quarto de hora à procura do número certo e de lhes telefonar. Não queria que destruíssem o raio da garrafa, nem as coisas que levava lá dentro. Liza reagiu mal; perguntou-me onde tinha eu a cabeça. "Nas tuas mamas, nas tuas mãos, no teu ventre, nas tuas coxas, nos teus lábios".
- E que tal "no teu espírito, na tua inteligência, no teu humor"?
- Seria uma mentira.
- Ao menos dizes a verdade.
Digo? Não sei. Neste caso é fácil, claro. Sei que Liza não se magoa com esta resposta; e quero encorajá-la a manter o marido. Mas se eu mentisse, em vez de dizer a verdade? Se eu dissesse:
- Sabes perfeitamente que quando penso em ti penso em tudo de ti.
Que diria Liza? É uma mulher inteligente: não acreditaria. Ou: é sensual e diria "que pena. Neste momento estou muito mais voltada para as mamas do que para o Le Monde" - eu tinha comprado o jornal no aeroporto. Ou: sentia-se culpada e responderia com um sorriso neutro, silencioso (há sorrisos silenciosos. Não sei explicar como são).
Enfim, pode estabelecer-se que Liza não está contente; que não o exterioriza muito. Provavelmente vai deitar-se na banheira com um whisky e o jornal. Eu volto ao aeroporto, onde os trâmites demoram séculos. Consigo recuperar a mala e volto para o hotel.
Aqui a vontade é dizer "Liza não estava. Deixou uma nota - volto para casa. Ou - fui passear. Encontramo-nos às nove no hall para jantar. Ou - o Pedro telefonou. Está triste. Acho que deve sentir que alguma coisa se passa". Mas estava; na cama a dormir, nua como sempre dorme. Dispo-me e deito-me encostado a ela. "Amo-te", diz-me. "Queria zangar-me contigo. Deixar de te falar, de pensar em ti; serias como uma nuvem que passou e ocultou o sol e se foi embora e o sol voltou. Não é isso que quero. Amo-te".
Não sei o que é o amor, já por aqui muitas vezes o tenho dito. Mas sei o que é não ser amado. E isso não quero mais, eu tão pouco. Encosto-me a ela e digo-lhe "amo-te". Amamo-nos. Vamos jantar. Amanhã levo-a ao restaurante do Jean, no Boulevard Edgar Quinet. Chama-se "Maintenant". Vou comprar um anel sem ela ver e oferecer-lho-ei. Se ela vier, claro.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.