S. Vicente de Fora
Ia muitas vezes ao chafariz de S. Vicente de Fora. Naquele dia, ainda de muito longe vi uma senhora sentada na borda do tanque. Balançava-se e, com uma certa regularidade, deixava-se cair para dentro de água. Depois sentava-se no mesmo sítio e recomeçava. Foi assim durante todo o tempo que levei a chegar ao pé dela. O vestido às flores moldava-lhe o corpo, encharcado; chorava; estava bêbeda. Apercebi-me de que se deixava cair quando começava a se-lhe difícil conter os soluços. Peguei-lhe pela mão e levei-a para minha casa. Despi-a, pu-la no duche - precisei de a segurar e de a ensaboar - limpei-a e deitei-a na minha cama. Naquela tarde ia para Paris por dois ou três dias; deixei-lhe uma das chaves de casa e um bilhete: "volto daqui a três dias". Não o assinei, nem lhe deixei qualquer forma de me contactar.
A verdade é que não corria grandes riscos: a minha casa era um tugúrio sem nada de valioso num bairro que dantes era antigo e agora é só degradado. As paredes estão cobertas de fotografias minhas e de quadros de uma antiga namorada que pintava como eu fotografo, ou vivo: mal. Não havia nada que valesse a pena roubar.
Nunca tinha visto a senhora; percebi que a vontade dela era deixar-se ficar dentro do tanque, mas que este era demasiado baixo para isso. É um desejo que conheço e sei identificar de olhos fechados. Não falou durante o tempo que estive com ela; mas começou a deixar as lágrimas correr livremente, e a gemer, baixinho. Era mais nova do que eu e seria decerto bonita, se não tivesse a cara coberta de maquilhagem desfeita pela água, os cabelos desalinhados e um horrível, fétido, hálito.
Deixei-a na cama, a dormir. Quando voltei, três dias depois, tinha-me deixado escrito nas costas do papel que eu lhe escrevera o nome ("Maria Teresa"), o número de telefone e "obrigada" escrito de fugida, de vergonha. Deitei o papel fora. Nunca mais a vi.
Foi há muitos anos. Lembrei-me agora por causa desta fotografia. Não sei porque recordo o nome dela.
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