10.4.10

Kefir

Todos os dias bebo uma caneca grande de kefir, um kefir espesso, muito saboroso, amargo. Já não sei a que propósito isto me ocorreu. Provavelmente por causa da Ingrid, a alemã que pela primeira vez me deu kefir a provar. Foi há muitos anos.

Hoje via-de novo, acreditem ou não. Estava com o marido no Martinho da Arcada. Ingrid é violonista, toca numa grande orquestra suíça, ou francesa. Ela disse-me qual, mas eu não me lembro. O marido é grande, parece um urso. É escritor, ou poeta, qualquer coisa no género.Chama-se Joseph; é muito doce quando fala, muito tímido, retraído. O contrário do que parece. Estavam no Martinho por causa de Pessoa, claro. Tenho que reconhecer que gosto imenso de Pessoa, mas estou ligeiramente farto dele; um bocadinho, só.

Pois Ingrid estava no Martinho da Arcada com o marido. Fui eu que a reconheci: quando nos conhecemos eu tinha uma barba muito grande e era magro. O namorado dela era psicólogo. Só há dias, por intermédio da S. soube que ele tinha ficado muito triste com a aventura que tivemos em Cabo Verde, quando eles estavam de férias e eu à espera de uma peça para o motor do barco onde na altura trabalhava. Pensava que ele não sabia de nada. Há coisas que são difíceis de esconder, suponho. E é uma coincidência: há três semanas estava com a S., com quem fui casado todos aqueles anos; estávamos em casa de uma cantora de ópera e eu falei em Ingrid, que é bastante conhecida (nunca falei a S. dos meus casos, apesar de ela os conhecer todos). Foi então que me disse "o D. ficou muito triste com a vossa história em Cabo Verde". Eu fiquei com pena do D. claro. Mas agora é tarde para fazer o que quer que seja. Ele foi trabalhar para a CARE e casou-se com uma senegalesa muito feia. Nunca mais o vi, soube isto porque conheci um tipo da CARE que trabalhara com ele não sei onde.

Hoje vi Ingrid e o marido, que estão em Lisboa de férias. Há muitos anos estive com ela 15 dias em Cabo Verde, e depois disso duas ou três vezes nas montanhas, onde ela vivia. A última vez que fizemos amor ela tocou para mim; uma improvisação muito lenta, lancinante, linda. Ingrid tinha uns cabelos longos, loiros. Tocava nua, com os cabelos pelas costas. Os seios mexiam-se devagarinho, a acompanhar o movimento dos braços e do corpo. Era muito emotiva, vulcânica.

Eu fui-me embora nesse dia, de manhã. Disse-lhe "não nos podemos voltar a ver". Ela perguntou-me "porquê?" "Porque se nos virmos de novo começará a ser adultério". "Até agora não foi?" "Não". Deu-me um bocado de kefir e pediu-me para tomar conta dele, acontecesse o que acontecesse.

Não consegui, claro: foi há muitos anos, muitas vidas. Mas volto sempre a ter kefir, sempre. Amanhã vou ao hotel onde eles estão e vou deixar-lhe um frasco. Na recepção; não a quero voltar a ver. É bom, saboroso, espesso; muito amargo.

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