4.4.10

Verdade

A verdade não está nos ricos, nem nos pobres, ou remediados. Não está nos feios, nos bonitos, nas sensuais, nas distantes, altaneiras. A verdade não está na beleza, e muito menos na fealdade; não está na noite, no dia, no mar ou na montanha; não está num sorriso, num ventre que se oferece, ou te pede; numa pele.

A verdade não está num passeio ao longo dos cais de Genève, nas ruas de Paris ou nas de Londres, tão monótonas; não está nas navegações no lago Tanganika, nas montanhas do Sud Kivu, na Península de Burton, provavelmente a coisa mais bonita que vi na vida; nem nos 12 Apóstolos de Cape Town, num pôr-do-sol nos trópicos, no Rift, num dia de chuva nos planaltos burundeses.

Não está em ti - se bem tu sejas uma das imagens da verdade - nem em Bach, tocado por Gould; não está num cântico de Hildegarde von Bingen, num poema de Júdice ou de Pedro Támen, num conto de Borges, nos livros todos de Marguerite Yourcenar ou de Beckett.

A verdade não está num sorriso bonito, convidativo; na música de Steve Lacy ou nos pianos de Mal Waldron ou Keith Jarret, na energia tectónica de Miles, na voz de Jeanne Lee, num solo de guitarra de John Lee Hooker ou Jimi Hendrix, na emoção dos Deep Purple, na leveza de Lightin' Hopkins, na impetuosidade de Koko Taylor.

Não está na tristeza - longe disso - nem na alegria; não está naquilo que queremos, nem naquilo que nunca teremos (se bem esteja mais perto do que nunca teremos do que do que já temos); não está na estúpida e incontrolável vontade de descobrir o que não conhecemos, ou confirmar o que já sabemos.

A verdade não está nesta irreprimível vontade de me desfazer, desaparecer, diluir, esfarelar, ferir, magoar, morrer, arder. Nem na quantidade de páginas brancas que serão, quer queiremos quer não, obscurecidas com tinta. Não está no amor todo que te fiz, nem no que te farei. Não está no desejo, meu amor - não é a base do meu amor por ti, mas a consequência.

A verdade não está nesta noite, que ainda não começou e já acabou, nem na de amanhã; não está na tua ausência, nas inúmeras chegadas e partidas de que a minha vida é feita, nos maus whiskies ou bons vinhos que já bebi, e beberei, se Deus quiser.

A verdade não está em nenhuma destas coisas porque a verdade não está, é. E uma vida não é encontrá-la: é procurá-la.

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