Num post ali em baixo faço referência à navegação estimada, "a mais bonita de todas". É. E em vez de se teimar na navegação com sextante - que diriam se para tirar a carta de condução fosse necessário saber conduzir um carro de bois? - devia era insistir-se na navegação estimada, ou "navegação querida", para os íntimos (a navegação astronómica é muito bonita, também; e baseia-se em muito naquela).
Em duas palavras, navegação estimada consiste em calcularmos a nossa posição baseados apenas no odómetro - instrumento que mede a velocidade do navio e consequentemente a distância percorrida num determinado lapso de tempo (às vezes acontece também este estar avariado, pelo que devemos estimar igualmente a velocidade) - e a agulha (instrumento a que algumas pessoas chamam bússola, para se distinguir dos marinheiros).
Não sendo o mar uma estrada, graças a Deus, a estes dois dados há que acrescentar a influência das correntes, do vento, as características do navio ou da embarcação, as particularidades dos homens do leme.
Quando andamos no mar há muito tempo sem uma posição exterior (astronómica, radiogoniométrica, radar, visual - o meu máximo é cinco dias) a margem de erro é, naturalmente, enorme; se não estivermos muito longe de uma costa podemos aproximar-nos desta e situarmo-nos com o auxílio de um ponto conspícuo (ou "com cuspo", para os que dizem "querida" em vez de estimada). Para além do benefício evidente de nos definir correctamente a posição, esta técnica tem a vantagem de nos ajudar a melhorar a nossa estima (e às vezes o inconveniente de reforçar a nossa auto-estima, quando nos apercebemos de que não estávamos nada longe do sítio onde pensávamos estar).
Todos as fontes são boas para estimarmos a posição. Um dia, muito antes do GPS, vinha da Córsega para Agde, uma distância relativamente pequena (225 milhas, diz o Google Earth), num barco que não conhecia de todo; durante a noite apanhámos uma daquelas tempestades do Mediterrâneo que chega sem pré-aviso, dura meia-dúzia de horas, estraga tudo o que pode estragar (aquela obrigou-me a subir ao galope do mastro para pôr a adriça da grande no moitão) e se vão embora como se nada fosse com elas. De manhã pensava ver terra, e não vi. Refiz os cálculos todos, introduzi mais deriva, tirei velocidade (o barco era pequeno, tínhamos passado um bom bocado com a grande a bater a meio mastro, por causa da adriça entalada fora do moitão, coisa frequente naqueles tempos, e pensei que o odómetro estaria optimista - era um truque das empresas de charter, mas isso fica para depois) e nada: devia ver terra e não via.
A decisão, claro, foi virar de bordo e ir para norte: se há coisa de que ninguém gosta é andar sem saber onde está. Durante o bordo para terra começámos a ser sobrevoados por inúmeros aviões de linha. Um dos tripulantes era um fanático de aviação e a certa altura começou a olhar para a carta, para os aviões, para a carta e pergunta-me:
- Luís, nós devemos estar um pouco antes da longitude de Marselha, não é?
- Sim. Mas não percebo porque raio de carga de água é que não se vê terra. A visibilidade está óptima.
- Acho que já passámos Marselha há muito tempo.
- Isso não é possível. Olha para o odómetro. Mesmo que tivesse um erro, nunca seria assim tão grande.
- Eu penso que sim. Repara: aqueles aviões todos vão de certeza a caminho do rádio-farol de Marselha. E estão a cruzar-nos com um ângulo de x graus. Se nós estivéssemos na longitude de Marselha, ou lá perto, eles fariam um ângulo connosco de pouco menos de y graus. Ora o rumo deles é bastante superior a isso. Estamos muito mais para a frente do que pensamos.
Tirei um azimute ao rumo dos aviões, entrei com aquele dado nos cálculos, refiz uma posição estimada, e duas ou três horas depois consegui uma posição (gónio ou visual, não me lembro) suficientemente segura que nos permitiu situar-nos, e virar de bordo para o nosso destino. O odómetro tinha um erro de 25% para menos, e tínhamos andado muito mais do que eu pensava.
(Num barco conhecido isto não aconteceria: um navegador experiente num barco que conhece sabe a que velocidade vai até a dormir - pelo barulho, sobretudo, pelos resmungos ou suspiros do casco, pela força que o leme está a fazer.)
Nota: graças ao GPS tudo isto é passado, e os verbos deviam ser postos no tempo correspondente. Mas os fundamentos da navegação estimada deviam, na minha opinião, continuar a ser ensinados.
Em duas palavras, navegação estimada consiste em calcularmos a nossa posição baseados apenas no odómetro - instrumento que mede a velocidade do navio e consequentemente a distância percorrida num determinado lapso de tempo (às vezes acontece também este estar avariado, pelo que devemos estimar igualmente a velocidade) - e a agulha (instrumento a que algumas pessoas chamam bússola, para se distinguir dos marinheiros).
Não sendo o mar uma estrada, graças a Deus, a estes dois dados há que acrescentar a influência das correntes, do vento, as características do navio ou da embarcação, as particularidades dos homens do leme.
Quando andamos no mar há muito tempo sem uma posição exterior (astronómica, radiogoniométrica, radar, visual - o meu máximo é cinco dias) a margem de erro é, naturalmente, enorme; se não estivermos muito longe de uma costa podemos aproximar-nos desta e situarmo-nos com o auxílio de um ponto conspícuo (ou "com cuspo", para os que dizem "querida" em vez de estimada). Para além do benefício evidente de nos definir correctamente a posição, esta técnica tem a vantagem de nos ajudar a melhorar a nossa estima (e às vezes o inconveniente de reforçar a nossa auto-estima, quando nos apercebemos de que não estávamos nada longe do sítio onde pensávamos estar).
Todos as fontes são boas para estimarmos a posição. Um dia, muito antes do GPS, vinha da Córsega para Agde, uma distância relativamente pequena (225 milhas, diz o Google Earth), num barco que não conhecia de todo; durante a noite apanhámos uma daquelas tempestades do Mediterrâneo que chega sem pré-aviso, dura meia-dúzia de horas, estraga tudo o que pode estragar (aquela obrigou-me a subir ao galope do mastro para pôr a adriça da grande no moitão) e se vão embora como se nada fosse com elas. De manhã pensava ver terra, e não vi. Refiz os cálculos todos, introduzi mais deriva, tirei velocidade (o barco era pequeno, tínhamos passado um bom bocado com a grande a bater a meio mastro, por causa da adriça entalada fora do moitão, coisa frequente naqueles tempos, e pensei que o odómetro estaria optimista - era um truque das empresas de charter, mas isso fica para depois) e nada: devia ver terra e não via.
A decisão, claro, foi virar de bordo e ir para norte: se há coisa de que ninguém gosta é andar sem saber onde está. Durante o bordo para terra começámos a ser sobrevoados por inúmeros aviões de linha. Um dos tripulantes era um fanático de aviação e a certa altura começou a olhar para a carta, para os aviões, para a carta e pergunta-me:
- Luís, nós devemos estar um pouco antes da longitude de Marselha, não é?
- Sim. Mas não percebo porque raio de carga de água é que não se vê terra. A visibilidade está óptima.
- Acho que já passámos Marselha há muito tempo.
- Isso não é possível. Olha para o odómetro. Mesmo que tivesse um erro, nunca seria assim tão grande.
- Eu penso que sim. Repara: aqueles aviões todos vão de certeza a caminho do rádio-farol de Marselha. E estão a cruzar-nos com um ângulo de x graus. Se nós estivéssemos na longitude de Marselha, ou lá perto, eles fariam um ângulo connosco de pouco menos de y graus. Ora o rumo deles é bastante superior a isso. Estamos muito mais para a frente do que pensamos.
Tirei um azimute ao rumo dos aviões, entrei com aquele dado nos cálculos, refiz uma posição estimada, e duas ou três horas depois consegui uma posição (gónio ou visual, não me lembro) suficientemente segura que nos permitiu situar-nos, e virar de bordo para o nosso destino. O odómetro tinha um erro de 25% para menos, e tínhamos andado muito mais do que eu pensava.
(Num barco conhecido isto não aconteceria: um navegador experiente num barco que conhece sabe a que velocidade vai até a dormir - pelo barulho, sobretudo, pelos resmungos ou suspiros do casco, pela força que o leme está a fazer.)
Nota: graças ao GPS tudo isto é passado, e os verbos deviam ser postos no tempo correspondente. Mas os fundamentos da navegação estimada deviam, na minha opinião, continuar a ser ensinados.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.