De vez em quando sou visitado por uma dor, como outros pela Virgem Maria, e outros ainda pelo desejo. É uma grande dor, e grande chatice: reduz a nada a dicotomia tolerância / paciência que, suave e discretamente, tenho vindo a desenvolver com os anos.
Para a combater utilizo duas terapias: tomar comprimidos analgésicos em quantidade suficiente; e lembrar-me de coisas boas que me aconteceram: os seios pequenos, redondos, bem formados de ..., que nunca teve filhos e os guardou assim, duros e lindos durante muito tempo; as coxas de ..., que me apertavam tão fortemente quando fazíamos amor que eu pensava que se ela tivesse uma cãibra seria incapaz de me libertar; os lábios de ..., que me beijavam alternadamente os meus e o membro, como se quisessem contar os segredos de uns ao outro, ou vice-versa; o ventre de ..., uma planície tão lisa como o tampo de uma mesa, no qual tantas vezes galopei, mergulhei, me perdi e reencontrei.
Normalmente, ao fim de meia dúzia de comprimidos e meia dúzia de memórias a dor vai-se, e ficam apenas a intolerância e a impaciência. Para essas não há remédio. Enfim, há: o ódio a este corpo que me traíu, que todos os dias me diz, de uma forma ou outra, que já não sou imortal, já não sou omnipotente.
Não passo de maquinista na SNCF, a empresa francesa de caminhos-de-ferro. Sou-o por paixão - nunca quis ser outra coisa senão maquinista de comboios. Ainda bem: por vezes, nem os comprimidos nem os seios chegam para me fazer esquecer a dor e sozinho na minha cabine posso escondê-la. Proibir-me-iam de conduzir comboios mal soubessem, é óbvio. As pessoas gostam muito de partilhar os sofrimentos, de dizer a toda a gente que lhes dói isto e aquilo, sem se lembrarem do prejuízo que isso lhes pode trazer.
É muito raro que esta mistura de comprimidos e de corpos (ou melhor: a memória deles, que é o que me resta) não funcione. Geralmente ao fim de um dia ou dois a dor vai-se. Desta vez não é o caso: já dei três voltas e meia a todas as mulheres com quem fui feliz - devo confessar que são muitas mais do que aquelas que foram felizes comigo, mas agora é tarde. Já não posso fazer nada. Talvez se elas soubessem desta dor o fossem, não sei. Talvez a vingança seja um reconfortante. Talvez já me tenham esquecido - ; já tomei três vezes os comprimidos que o médico impôs como limite; até já pensei, o que só muito raramente me acontece, em mulheres novas, mulheres com quem nunca dormi e gostaria de ter dormido, e nada. A dor não passa.
Estou habituado a dores, reparem. Tanto as físicas como as outras, muio piores. Quando era mais novo era dado a depressões terríveis, depressões que enchiam o espaço entre os carris como se fossem um muro de betão e eu sentia a tristeza transbordar de mim para fora e a força que o comboio tinha de fazer para a atravessar, como se estivesse a perfurar um túnel numa montanha de basalto. E também estou habituado a esconder o sofrimento: não queria que me impedissem de conduzir os meus comboios pela França fora (naquela altura. Agora estou no serviço internacional e vou muitas vezes a Espanha, à Alemanha, ao Reino Unido, a Itália).
Felizmente nunca tive uma depressão e esta dor ao mesmo tempo. A verdade é que tenho cada vez menos depressões: espero menos da vida e sei lidar melhor com o pouco que dela tenho. Até com a dor aprendi a lidar; e tenho de continuar a aprender. Acabaram-se-me os comprimidos hoje. Muito em breve acabar-se-me-ão os corpos. Todos.
Para a combater utilizo duas terapias: tomar comprimidos analgésicos em quantidade suficiente; e lembrar-me de coisas boas que me aconteceram: os seios pequenos, redondos, bem formados de ..., que nunca teve filhos e os guardou assim, duros e lindos durante muito tempo; as coxas de ..., que me apertavam tão fortemente quando fazíamos amor que eu pensava que se ela tivesse uma cãibra seria incapaz de me libertar; os lábios de ..., que me beijavam alternadamente os meus e o membro, como se quisessem contar os segredos de uns ao outro, ou vice-versa; o ventre de ..., uma planície tão lisa como o tampo de uma mesa, no qual tantas vezes galopei, mergulhei, me perdi e reencontrei.
Normalmente, ao fim de meia dúzia de comprimidos e meia dúzia de memórias a dor vai-se, e ficam apenas a intolerância e a impaciência. Para essas não há remédio. Enfim, há: o ódio a este corpo que me traíu, que todos os dias me diz, de uma forma ou outra, que já não sou imortal, já não sou omnipotente.
Não passo de maquinista na SNCF, a empresa francesa de caminhos-de-ferro. Sou-o por paixão - nunca quis ser outra coisa senão maquinista de comboios. Ainda bem: por vezes, nem os comprimidos nem os seios chegam para me fazer esquecer a dor e sozinho na minha cabine posso escondê-la. Proibir-me-iam de conduzir comboios mal soubessem, é óbvio. As pessoas gostam muito de partilhar os sofrimentos, de dizer a toda a gente que lhes dói isto e aquilo, sem se lembrarem do prejuízo que isso lhes pode trazer.
É muito raro que esta mistura de comprimidos e de corpos (ou melhor: a memória deles, que é o que me resta) não funcione. Geralmente ao fim de um dia ou dois a dor vai-se. Desta vez não é o caso: já dei três voltas e meia a todas as mulheres com quem fui feliz - devo confessar que são muitas mais do que aquelas que foram felizes comigo, mas agora é tarde. Já não posso fazer nada. Talvez se elas soubessem desta dor o fossem, não sei. Talvez a vingança seja um reconfortante. Talvez já me tenham esquecido - ; já tomei três vezes os comprimidos que o médico impôs como limite; até já pensei, o que só muito raramente me acontece, em mulheres novas, mulheres com quem nunca dormi e gostaria de ter dormido, e nada. A dor não passa.
Estou habituado a dores, reparem. Tanto as físicas como as outras, muio piores. Quando era mais novo era dado a depressões terríveis, depressões que enchiam o espaço entre os carris como se fossem um muro de betão e eu sentia a tristeza transbordar de mim para fora e a força que o comboio tinha de fazer para a atravessar, como se estivesse a perfurar um túnel numa montanha de basalto. E também estou habituado a esconder o sofrimento: não queria que me impedissem de conduzir os meus comboios pela França fora (naquela altura. Agora estou no serviço internacional e vou muitas vezes a Espanha, à Alemanha, ao Reino Unido, a Itália).
Felizmente nunca tive uma depressão e esta dor ao mesmo tempo. A verdade é que tenho cada vez menos depressões: espero menos da vida e sei lidar melhor com o pouco que dela tenho. Até com a dor aprendi a lidar; e tenho de continuar a aprender. Acabaram-se-me os comprimidos hoje. Muito em breve acabar-se-me-ão os corpos. Todos.
Deixa-me, antes de mais, sorrir :-)… tinha de te expressar o sorriso que me foi ficando colado no rosto ao longo do teu texto.
ResponderEliminarCada um tenta combater as dores com os seus próprios remédios, acrescidos daqueles que os médicos receitam… mas nem sempre resulta, não é?
Bela imagem, a do maquinista… gostei de te ler… verdadeiramente!
Beijinhos e Bom Ano