Comecemos pelo princípio. O barco é um nojo. Metade dos instrumentos não funciona, as casas de banho cheiram mal, tudo é bricolage do pior. A única coisa que se safa são as velas. Está dito: Switch, nunca mais. Faço a próxima semana se não puder evitá-lo; se puder, não faço. Não dá gozo, ser skipper de um barco neste estado.
Passageiros: um veterinário na reforma, visivelmente muito mais rico do que diz; tem um Dufour 385; é adorável, com um sentido de humor cáustico, sempre dito no tom de quem ajuda à missa; e respectiva esposa, uma senhora viva, que em nova deve ter sido linda; ainda é. Um director comercial de informática, simpático, nos quarentas; e respectiva, um nojo de pessoa e de mulher. Feia, magra, contabilista, parece-se com o retrato da mulher que não bebe ginginha, na Ginginha do Rossio. Já tive que a pôr na linha duas vezes; agora, após um curto período de nojo, está a tentar tornar-se mais simpática.
Uma bióloga, 45 anos, solteira. No primeiro ou segundo dia disse-me que talvez fosse não sei onde que ia encontrar o homem da sua vida. Duvido muito que o venha a encontrar – nem um maricas a quereria para mulher. Não é feia, e é desesperante, quando quer. Infelizmente quer muitas vezes. Uma mãe e filha, esta enfermeira de 25 anos, género carro de assalto, com um sentido de humor menos refinado do que o outro mas mesmo assim apreciável; aquela funcionária administrativa numa grande empresa.
E eu, que tento ser paciente e falho, que tentei ligar o grupo e não falhei completamente, que me lembro com saudades do meu gupo de alemães e de quando estive aqui em 2004 com o Júlio, e companhia.
"Aqui" é Mayreau, é a praia de Salt Whistle Bay, uma das mais bonitas onde já estive. Meia lua perfeita, palmeiras, água translúcida e tépida. Não gosto de praia, mas é impossível não gostar desta. Já estamos no caminho para cima: já estivemos nos deux Pitons, em Bequia, sweet Bequia, pelos Cays, por Clifton Bay, onde foi tirada a fotografia que está ali em baixo. Fui àquele bar, em peregrinação; estava aberto, mas vazio – isto é, totalmente vazio. Não havia clientes nem empregados nem a dona. Ninguém. Tirei um copo de uma estante e bebi um Mount Gay Extra Old in memoriam. Júlio, deves-me um copo.
Nesta viagem tudo continua bonito e lindo, e nada é verdadeiramente agradável. Ser skipper é um trabalho; às vezes parece que não; mas é.
Todos os grupos têm um “eu sei” – neste é o Robert, o ex-veterinário armador, e não é desagradável – e um “eu fiz” – praticamente todos os outros. “Eu fiz (ou nós fizemos)” a Guatemala, a ìndia, o Vietnam, o Panamá, o Senegal. Eles fizeram; eu não fiz nada, mas não é por inveja que não suporto ouvir “eu fiz”. É só porque aborrece-me pensar que fizeram tudo, e não perceberam nada. “Eu fiz”, e hoje Pascale, a bióloga, que já fez Cuba, Senegal e metade do raio que a parta disse-me que eu lhes devia comunicar, quando encontrasse coisas “assim interessantes” – neste caso, um roti chicken, uma comida de rua deliciosa. “Fiz” tudo e mais alguma coisa, mas não consegue comprar um croquete (não é um croquete; mas pouco interessa) sozinha. De passagem seja dito que o roti é delicioso, carne de galinha cozinhada num molho de caril e envolta numa massa muito fina.
Hoje dormimos aqui; amanhã saímos cedo para Wallilabou Bay (Wallabou, para os íntimos). Tenho pressa de chegar a sábado da outra semana, para poder dizer adeus à Switch; e mais pressa ainda de ir para o Brasil, onde me espera o Bartolomeu, impaciente, coitado.
Salt Whistle estava cheia de barcos; agora estou em Wallilabou. O meu grupo almoça a bordo. De vez em quando oiço-lhes as gargalhadas, muito longe. Eu vim ao restaurante almoçar, porque me apetece estar sozinho e para ir à net. De manhã tive direite a uma sessão de retrete entupida, mas felizmente resolvi-a depressa. Há muito tempo que não me acontecia. Antigamente costumava dizer que a vida de um charter skipper se resume a desentupir as bombas das retretes e a lavar conveses. Felizmente não é verdade.
Chove. A paisagem fica como que coberta por filme translúcido – o verde da vegetação continua verde, as cores vivas vivas, mas as outras esbatem-se num cinzento claro, verde-azulado. Este ano o aquecimento global deu-nos uma das épocas mais frias de que há memória. Imagino a minha tripulação, que decidiu ir ver as quedas de água.
Passageiros: um veterinário na reforma, visivelmente muito mais rico do que diz; tem um Dufour 385; é adorável, com um sentido de humor cáustico, sempre dito no tom de quem ajuda à missa; e respectiva esposa, uma senhora viva, que em nova deve ter sido linda; ainda é. Um director comercial de informática, simpático, nos quarentas; e respectiva, um nojo de pessoa e de mulher. Feia, magra, contabilista, parece-se com o retrato da mulher que não bebe ginginha, na Ginginha do Rossio. Já tive que a pôr na linha duas vezes; agora, após um curto período de nojo, está a tentar tornar-se mais simpática.
Uma bióloga, 45 anos, solteira. No primeiro ou segundo dia disse-me que talvez fosse não sei onde que ia encontrar o homem da sua vida. Duvido muito que o venha a encontrar – nem um maricas a quereria para mulher. Não é feia, e é desesperante, quando quer. Infelizmente quer muitas vezes. Uma mãe e filha, esta enfermeira de 25 anos, género carro de assalto, com um sentido de humor menos refinado do que o outro mas mesmo assim apreciável; aquela funcionária administrativa numa grande empresa.
E eu, que tento ser paciente e falho, que tentei ligar o grupo e não falhei completamente, que me lembro com saudades do meu gupo de alemães e de quando estive aqui em 2004 com o Júlio, e companhia.
"Aqui" é Mayreau, é a praia de Salt Whistle Bay, uma das mais bonitas onde já estive. Meia lua perfeita, palmeiras, água translúcida e tépida. Não gosto de praia, mas é impossível não gostar desta. Já estamos no caminho para cima: já estivemos nos deux Pitons, em Bequia, sweet Bequia, pelos Cays, por Clifton Bay, onde foi tirada a fotografia que está ali em baixo. Fui àquele bar, em peregrinação; estava aberto, mas vazio – isto é, totalmente vazio. Não havia clientes nem empregados nem a dona. Ninguém. Tirei um copo de uma estante e bebi um Mount Gay Extra Old in memoriam. Júlio, deves-me um copo.
Nesta viagem tudo continua bonito e lindo, e nada é verdadeiramente agradável. Ser skipper é um trabalho; às vezes parece que não; mas é.
Todos os grupos têm um “eu sei” – neste é o Robert, o ex-veterinário armador, e não é desagradável – e um “eu fiz” – praticamente todos os outros. “Eu fiz (ou nós fizemos)” a Guatemala, a ìndia, o Vietnam, o Panamá, o Senegal. Eles fizeram; eu não fiz nada, mas não é por inveja que não suporto ouvir “eu fiz”. É só porque aborrece-me pensar que fizeram tudo, e não perceberam nada. “Eu fiz”, e hoje Pascale, a bióloga, que já fez Cuba, Senegal e metade do raio que a parta disse-me que eu lhes devia comunicar, quando encontrasse coisas “assim interessantes” – neste caso, um roti chicken, uma comida de rua deliciosa. “Fiz” tudo e mais alguma coisa, mas não consegue comprar um croquete (não é um croquete; mas pouco interessa) sozinha. De passagem seja dito que o roti é delicioso, carne de galinha cozinhada num molho de caril e envolta numa massa muito fina.
Hoje dormimos aqui; amanhã saímos cedo para Wallilabou Bay (Wallabou, para os íntimos). Tenho pressa de chegar a sábado da outra semana, para poder dizer adeus à Switch; e mais pressa ainda de ir para o Brasil, onde me espera o Bartolomeu, impaciente, coitado.
Salt Whistle estava cheia de barcos; agora estou em Wallilabou. O meu grupo almoça a bordo. De vez em quando oiço-lhes as gargalhadas, muito longe. Eu vim ao restaurante almoçar, porque me apetece estar sozinho e para ir à net. De manhã tive direite a uma sessão de retrete entupida, mas felizmente resolvi-a depressa. Há muito tempo que não me acontecia. Antigamente costumava dizer que a vida de um charter skipper se resume a desentupir as bombas das retretes e a lavar conveses. Felizmente não é verdade.
Chove. A paisagem fica como que coberta por filme translúcido – o verde da vegetação continua verde, as cores vivas vivas, mas as outras esbatem-se num cinzento claro, verde-azulado. Este ano o aquecimento global deu-nos uma das épocas mais frias de que há memória. Imagino a minha tripulação, que decidiu ir ver as quedas de água.
Mesmo com essa crónica em tons de negro a dar para o cinza, a memória que tenho desses lugares é bem azul turquesa matizado em reflexos de Mount Gay.
ResponderEliminarAdorava estar aí contigo-stop
Começo a preparação de rumar para o Alentejo-stop
Talvez fundear perto de Évora-stop
Pelo caminho, planeio deitar o arquitecto pela borda fora-stop
escuto...