20.4.11

Livro de bordos - 19

A viagem até começou bem: gosto de iniciar uma viagem da mesma forma que inicio todos os dias o trajecto quotidiano, perdoem-me a redundância, sabendo que ele vai acabar do outro lado do mundo; os percursos que conhecemos de gingeira ganham outra cara, outra vida. Como se a realidade resvalasse, escorregasse numa casca de banana e a queda fosse a cinco fusos horários.

Infelizmente escorreguei numa casca de banana, mas a queda foi em Sta. Apolónia. O preço que a CP me tinha dado era falso; mais valia ter apanhado um avião. E os lugares, que segundo a senhora eram tantos, afinal não são. Só tenho lugar até Hendaye - e o tal preço miraculoso também era só para a estação onde, há muitos anos, tive de saltar uma rede para entrar em França. Lembro-me de uma estação entre o glauco e o cinzento, fria; uma atmosfera que  anos mais tarde reencontraria num filme chamado Stalker, de Tarkovsky. Trepei a rede, que era alta, depois de ter mandado a mochila. Estava convencido de que me tinham visto e em breve seria cercado por uma matilha de cães ululantes e polícias matraqueadores, mas não fui. Lembro-me distintamente de o ter feito; não me lembro porquê, nem de onde vinha ou para onde ia.

Mudou, com certeza, a estação; o meu estatuto também. Mas a verdade é que me preparo para me perguntar como irei de Hendaye para Paris. Já viajei várias vezes de TGV sem bilhete, mas por culpa minha - ou porque não tinha dinheiro, ou porque não havia lugar e eu tinha absolutamente de chegar ao destino.

Uma vez atravessei a França toda, da Bretanha a Genève, com 5 euros no bolso. A verdadeira ironia é que tinha ido à Bretanha negociar um contrato bastante importante (e que acabou por se concretizar). O regresso foi curioso, mas nessa altura andava de casaco e gravata, o que torna certas práticas mais fáceis. Em Genève tinha casa e jantar à espera. De outra vez vim da Argentina com um pouco menos - a diferença é que os meios de transporte já estavam pagos; e o que tinha à espera em Genève era uma festa de aniversário, trinta e seis, trinta e sete.

Mas estas coisas fazem-se quando há razões poderosas para elas. É pouca a vontade de repetir as audácias porque a CP, para cortar custos (cortar custos? A CP? deve ser para os pôr no desenvolvimento das linhas regionais, e assim), entrega as informações a miúdos de call center e provavelmente não lhes dá formação adequada; ou a miúda que me atendeu estava à rasca. Não sei. Pouco ou nada me apetece pensar nisso agora. Como tento não pensar que na Aigle Azur o bilhete me teria custado o mesmo que Lisboa - Paris, Páscoa ou não.

Uma empresa que não sabe dar informações correctas aos seus clientes quer fazer TGVs. Deviam começar por treinar com redes Märklin, e só depois brincar aos grandes.

II
O tempo passa depressa depois de ter passado; antes demora imenso. Assim é com as viagens longas de comboio ou autocarro: nunca mais acabam, e passaram num instante. Chegámos à hora a Hendaye. A cerca que há não sei quantas vidas saltei parece-me mais baixa do que a que tinha na memória. Tudo o resto é igual. Menos glauco: o dia nasce lindo, repousante como uma jovem senhora apaixonada, e saciada.

III
Acabei por encontrar um bilhete no TGV. Feitas as contas, a viagem ficou mais cara do que teria ficado na Aigle Azur. O comboio tem de facto um grande futuro junto dos eurocratas e das burguesias ocidentais, fartas do avião e com vergonha de serem vistas nas low cost. Viajar de comboio tornou-se chic; não há eurocrata ou quadro superior que não diga "prefiro de longe o caminho de ferro" com o ar enfadado e enfadante dos entendidos. Eu não gosto de aviões, estou farto deles até à medula. Mas pelo mesmo preço tê-lo-ia escolhido. Os comboios ocidentais são aviões que demoram mais tempo (e, admitidamente, voam mais baixo. Algumas paisagens são lindas de nos liquefazer).

IV
Chego a Montparnasse e vou direito ao Cana'Bar, ali ao lado, na rua Raymond Losserand. Já por aqui falei dele. É bom e barato, se não se beber vinho, mesmo da casa. Já me tinha esquecido dos preços de Paris. Mas é agradável, ver que desembarco em Paris como se estivesse em Lisboa. Gosto deste desenraizamento, de sentir que a minha cidade é aquela onde estou (se bem haja certos assuntos nos quais não me imisco, onde quer que esteja; mas isso é outra história). A rapariga que servia há três anos é a mesma; só se lhe mudou o rabo, ligeira mas compreensivelmente (está maior, agora, mas menos bonito). Interpreta mal as minhas tentativas de conversa, mas isso é Paris, não é ela.

Está calor, e Paris é doce, na Primavera. Amanhã estarei em Fort-de-France, que não é doce e não tem Primavera. Mas tem mar e trabalho, e isso são duas coisas que juntas justificam mil vidas e mil viagens.

1 comentário:

  1. Também gosto da sensação de desenraizamento, Luís, na perspectiva de um desprendimento total, de todos os lugares, de todas as coisas. Claro que é muito fácil ser-se desprendida quando se tem tudo… ou o essencial. :-)
    Uma boa viagem!

    ResponderEliminar

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.