24.6.11

Não acontece nada

O eléctrico avariou-se. Não foi hoje; já foi há muito tempo. As pessoas demoraram a sair: o wattman (ou a wattman, já não me lembro) não julgou necessário informar os passageiros que era uma avaria, e não uma paragem prolongada ou um problema de trânsito. Depois lá acabámos por perceber e descemos, cada um para seu lado. Alguns apanharam táxis, outros ficaram na paragem, outros ainda seguiram a pé. Não era o nosso eléctrico que estava avariado, à frente havia mais dois. E por coincidência numa paragem. Não interrompemos o trânsito porque as linhas naquela rua estão numa faixa dedicada.

Mas isto já foi há muito tempo: um par de largas semanas, talvez mesmo dois. Hoje não aconteceu nada de especial; se calhar é por isso que me lembro da história dos eléctricos e da falta de aviso. Enfim, talvez tenha acontecido: a cabeleireira que estava na cadeira ao meu lado enfiou a tesoura no pescoço da cliente. "Enfiou" é um exagero. Só o uso porque quero dar um bocadinho de tensão e dramatismo a um dia em que não aconteceu nada. A mulher estava a fazer-se a mim e picou ligeiramente o pescoço da gorda. Esta reclamou, a cabeleireira pediu-lhe desculpa e o Lopes, o meu barbeiro há trinta anos, grunhiu qualquer coisa entre dentes. Para além de cortes de cabelo e shampoos o Lopes percebe muito de futebol, política, mulheres, vinho, automóveis, agricultura, música pimba, cozedura de caracóis e construção civil; e tem uns laivos de conhecimentos de pescas, design, moda, electrónica (de divertimento; de computadores proclama alto e bom som que não percebe nada), gestão de resíduos urbanos, culinária, indústria têxtil, geopolítica, fabricação de móveis e alcatroamento de ruas. Nada mais lhe interessa: discute os temas que domina e os que apenas aflora com os mesmos à-vontade e energia; e maldiz o dia em que teve de transformar a barbearia em "Salão Mixto de Barbearia e Cabeleireiro Lopes e Lopes".

O segundo Lopes era a filha; queria ser barbeira mas ele não deixou e o compromisso foi o cabeleireiro. Entretanto casou-se e deixou "esta merda" ao Lopes. Hoje a miúda que contrataram para a parte feminina do cabeleiro picou o pescoço de uma gorda porque estava a olhar para mim em vez de olhar para o que estava a fazer.

Tenho cinquenta anos e trabalho num museu. Sou vigilante: passo horas sentado a olhar para as peças e para as pessoas. Poucos empregos me dariam mais satisfação do que este - aliás tive que ser despromovido, quando fui contratado era um dos responsáveis pelas compras. Depois fartei-me de olhar para as mamas da minha secretária e disse ao director que queria ser vigilante. Ele pensou que eu estava a brincar, primeiro; e depois doente. Tive de insistir muito, mas lá consegui. As mamas foram uma desculpa, creio eu; uma desculpa interna: nunca meti a rapariga ao barulho.

Era uma loira burra como um tripé, mas tinha uma cara, um corpo e um sorriso que levavam qualquer gajo à paralisia mental em dois milissegundos. Vim-me embora. Mamas tenho em casa, e inteligentes. E ricas: há muito que quem sustenta o lar é a Mariana; que eu ganhe mais ou menos não se nota. De qualquer forma o dinheiro não me interessa e faço questão em casa de só consumir até ao que ganho. O resto é um problema dela, não meu. Se quer ter carros, casas, talheres de não sei onde e viajar para os ir comprar ela que pague. Eu mantenho-me afastado do que posso quando posso (é raro entrar num dos seus carros, por exemplo).

Enfim, tudo isto para dizer que hoje não aconteceu nada. É sábado, reparem, e estou de folga. A Mariana foi às compras, ou visitar um dos seus toy boys. Tem uma colecção deles. Um dia pedi-lhe para me dar as datas de aniversário de cada um, para lhes enviar uma garrafa de vinho do Porto. Disse que não.

A Mariana é muito inteligente. Não sei porquê, só consigo seduzir mulheres inteligentes - ou melhor, conseguia, quando me dava a esse trabalho; e digo "não sei porquê" porque é verdade. Hoje fui beber um café com a Ana e ela disse-me que era uma das vantagens de não ter dinheiro: "assim elas são obrigadas a ver o que está lá atrás; as míopes afastam-se, e as que vêem bem gostam do que vêem".

Estou insensível aos lisonjeios e não a levei a sério. A verdade é que as mulheres inteligentes são difíceis e complicadas, mas as estúpidas são insuportáveis e quando me preocupava com mulheres acabava sempre por preferir as inteligentes. Não é bem "preferir": não aguentava as outras, e ou elas ou eu acabávamos sempre por nos irmos embora. Consigo fingir que sou complexo, mas não que sou o que sou: um homem simples, primário.

Agora não ligo muito às mulheres. A Mariana chega-me: foi a única pessoa, até hoje, que percebeu (ou pelo menos aceitou, com um sorriso e um afago) o meu pedido de despromoção; não me chateia com o dinheiro, não se chateia com a minha distância. Ela sabe que sou um touro numa arena, e que tudo o que peço é que a arena seja grande e esteja vazia.

Enfim, nem sempre. Acabei a olhar para a cabeleireira e fiz-lhe um sinal com a mão: apontei para o relógio. Vou encontrar-me com ela à saída. Há cabeleireiras inteligentes, e dias em que não acontece nada.

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