4.7.11

Aurora

Há palavras que se impõem com a urgência da vida. Palavras cujas águas rebentaram, que precisam de ser paridas, que precisam de respirar. Oxigénio.

Conheci uma mulher extraordinária. Tem 66 anos e chegou ontem a Cascais, depois de atravessar o oceano Atlântico sozinha num barco à vela. Para algumas pessoas o Atlântico é um lugar que vem nos mapas, um barco à vela um adorno literário e a solidão uma abstracção a que julgam pertencer nos momentos de maior desânimo ou estupidez. Aurora tem 66 anos e atravessou o Atlântico sozinha num veleiro: não sei o que isso significa.

Aurora sorri e no seu rosto o sorriso é a única coisa que não está cansada. É tão forte. Fala de coração cheio - e livre, de tão cheio - do que lhe está a acontecer. Das pessoas que conheceu e das que a seguem na Argentina: tem um clube de fãs donas-de-casa atrás do seu rasto no satélite e uma página no Facebook que não foi ela que criou. Os principais jornais do seu país escrevem artigos sobre ela, acompanham-na. Fala de si e do que lhe ensinou a solidão - ensina-nos, sem saber, que um mundo tão grande é pequeno para vontades enormes, que as grandes vontades são enormes para um mundo tão pequeno; que algumas vontades pequenas devem elevar-se; e que a ausência de vontade deve ausentar-se.

Aurora fala do amor - está apaixonada - com a sabedoria infinita de quem se deixa surpreender e já conhece a surpresa de trás para a frente. Como se o tivesse inventado e ainda estivesse embasbacada com a sua própria criação - como quando cozinhamos uma receita que nos sai mesmo bem, Aurora cozinhou o amor. O amor cru como a sua travessia e apurado como as tempestades e as bonanças. Como respirar - porque respirar é sempre bom, sempre sinal de vida. Aurora não tem idade e respira. Por respirar, o mundo é um lugar melhor, mais respirável. Oxigénio, isto é, Aurora.

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