30.12.11

Correspondência epistolar - I

Minha querida D.,

Chove, de novo. Estou no hotel da cidade onde aterrei ontem pela primeira vez, "para ficar". Entre aspas porque sabes, como eu, o que ficar significa: qualquer coisa entre um dia e alguns anos. O primeiro contacto com o país é agradável - um chauffeur de táxi que não diz uma palavra a viagem toda, muita vegetação, casas  de madeira um pouco por toda a parte.

O bar parece um quadro do Hopper, com estas cores pastel e uma ausência de movimento como não vi em muitos cemitérios. É agradável, repara: um primeiro andar com vista para a baía, música "do nosso tempo" (o que é o nosso tempo?) e tapas que se estivéssemos em Espanha seriam risíveis, mas aqui roçam o bom, quase.

No bar está uma loira com um grande nariz. É bonita. Da mesa onde estou vejo-a por vezes de perfil, um nariz bronzeado saliente da cascata de cabelos, viçosos e vigorosos. Jantei ao lado dela, no balcão, mas agora afastei-me e vim para uma mesa. Ela dizia-me "faz um esforço, tenta levar-me para a cama" e eu respondia-lhe "desculpa, não faço. Não estou no mercado, e se estivesse e fizesse o esforço que me pedes o resultado seria o mesmo: chegarias rapidamente à conclusão - acertada - de que sou um velho idiota e não perderias muito mais tempo comigo".

Pouco me interessa, na verdade. As coisas entre nós funcionaram porque o contrato era claro: foder-te é bom; não nos vamos apaixonar um pelo outro; de vez em quando podemos ceder à tentação de um bocadinho de ternura, mas só de vez em quando. Contrato mais simples e linear não existe.

Mas a simplicidade é uma longa e árdua conquista; não se encontra sentada num banco de bar com vista para a marina e ventilado pelos alíseos, por muito bonito que seja o nariz.

Prefiro pensar em ti, nos teus longos cabelos morenos, nas mamas que acariciavas enquanto fodíamos como se fossem de outra mulher, no ritmo lento, atlântico dos teus movimentos, na sensualidade palpável, tangível, sólida que de ti emanava. Às vezes olhava para ti sentada em mim e percebia quão ligeiro é o universo, no fundo: basta não confundirmos certas coisas.

A loira desistiu e começou a falar com a dona do bar; eu não desisti de pensar em ti. Não há nada mais erótico do que um contrato simples, claro, livremente aceite pelas duas partes: tu fodes-me e eu fodo-te; tu não me amas e eu não te amo.

Esta carta foi escrita numa das mesas do bar, por causa de um nariz loiro e de uma vista que me trouxe à memória a varanda de tua casa, cheia de flores. Esta carta foi escrita porque a clareza é o mais poderoso dos afrodísiacos, tanto quanto a inteligência. Nunca mais nos vimos, é bom saber que nunca mais nos veremos e melhor ainda que nunca nos esqueceremos, porque só o que é pesado e fez mal se esquece; a leveza não.

Um dia escrever-te-ei uma carta sem palavras, como eram os nossos encontros:  legível com o tacto, com o cheiro, com o ouvido ou os olhos mas sem uma única palavra, como quando fazíamos amor na cozinha, enquanto tu preparavas o jantar e eu servia o vinho; ou no hall, mal eu tinha tirado o chapéu e a gabardine (conhecemo-nos no inverno, não foi?)

Foder-te era como foder um universo do qual o ruído tivesse sido banido. O que nos uniu foi a ausência de barulho. Nada há mais duradouro do que o silêncio. Nunca conseguirei explicar isto a ninguém se não a ti, porque não preciso de to explicar. Nada é mais poderoso do que dois corpos e dois silêncios. Percebi-o contigo aos trinta anos; escrevo-o hoje aos sessenta. Há amores que não duram tanto como a nossa ausência de amor.

Pode ser que encontre a tua morada. Pode ser que leias esta carta ou até que nos encontremos um dia numa esquina de Lisboa, ou na consulta de geriatria.

Talvez a única palavra que interessa te chegue aos ouvidos: obrigado.

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