I
"Um homem sem dinheiro não tem palavra", li um dia algures. Não recordo se é um provérbio se uma observação pessoal, mas sei que é verdade. Um homem sem dinheiro não pode ter palavra; quem não tem dinheiro hoje não pode pensar no amanhã. (De um ponto de vista estrictamente biológico não deve sequer, mas isso é outro debate.)
Só pensa no futuro quem tem o presente assegurado - e esse futuro mede-se em dias, não se mede em meses. Daqui resulta que se se quer dar palavra a um homem deve dar-se-lhe dinheiro primeiro; e se se quer que ele tenha fé no futuro deve garantir-se-lhe o presente. É um risco, claro. Alguns desses homens continuarão sem palavra mesmo depois de ter dinheiro; e sem futuro, mesmo depois de ter um presente.
Mas não todos, nem mesmo a maioria. É um risco que vale a pena correr. Mais, que se deve correr. Não por razões humanitárias, humanistas, morais (apesar de estas não serem despiciendas); mas porque os benefícios que dos casos que resultam tiramos são incomensuravelmente maiores do que o que eles nos custaram. A satisfação moral vem depois.
Raimundo continua a roçar. De madrugada vendeu cuscus na rua; em seguida foi para o estaleiro capinar. Disse-me que chegaria às nove e meia. Chegou treze minutos depois, e pediu-me desculpa pelo atraso. Cinco minutos depois estava de catana na mão (creio que machete é espanhol). Tinha previsto mais dois homens para trabalhar com ele, mas não apareceram. É Carnaval, ninguem leva a mal? Não é bem assim. Eu levo. Mas as coisas são o que são, e não como nós queremos que elas sejam (não é forçosamente o mesmo do que "como deviam ser").
Hoje há um bocadinho de sol, e o céu ainda tem restos de azul. Só preciso que páre de chover quatro ou cinco dias. Se não chovesse uma semana eu começaria a considerar a existência ou não de Deus. Mas nesta época do ano é impossível; e Deus não existe, de qualquer maneira.
Já o Diabo sim, é uma maçada. Está em cada homem, como diria Riobaldo, de quem ontem me lembrei.
II
O restaurante Cornélio fica na esquina da rua do Pacífico com outra cujo nome não consigo ver daqui [rua do Coronel Pacífico com 7 de Setembro, ou 7 de Janeiro]. Não tem cardápio: só serve caranguejo, a três reais a peça. A rua cujo nome não consigo descortinar fica à beira-rio e da minha mesa vejo a outra margem, logo depois do fim da rua do Pacífico. Vegetação densa, da qual sobressaem palmeiras - ou coqueiros, não sei - altíssimas. As (ou os) ditos cresceram direitos, apesar do vento. A vegetação é realmente densa.
O único problema que até agora vejo no restaurante Cornélio é que da rua Pacífico me chega uma música altíssima, e péssima; e da outra rua idem, mas, naturalmente, diferente. A cacofonia seria insuportável, se não fosse assim em todo o lado.
Com excepção da vista do outro lado do ria, uma nesga da largura da rua, a paisagem é feia. Mas é bonita. Não sei como explicar esta contradição, como diria um ex-marxista. (Talvez recorrendo à autenticidade, ou coisas do género. Prefiro não o fazer: convivo bem com algumas contradições.)
Ou talvez seja consequência deste calor, tão denso como a selva do outro lado do rio, um calor que só as ocasionais rajadas de vento conseguem disfarçar. Gosto dele. Ando muito a pé e tenho por vezes a impressão de avançar numa piscina invisível, uma piscina de calor que me trespassa a pele e se distribui pelo meu corpo como se fosse sangue.
Tudo se transforma em calor.
É preciso viver nos alíseos para perceber a que ponto o vento é uma benção. E a cerveja, claro.
III
Os caranguejos demoram quarenta e cinco minutos a chegar. As músicas não são o único problema do restaurante Cornélio.
IV
Estou bicicletado, finalmente. Aluguei uma GTS (Good Technology Starting, informa uma das placas) Pro-M1 - esqueço decerto uma série de letras e números - por um valor a determinar.
A bicicleta pertence a Claúdio, que conheci em 2010 na pousada e agora trabalha no restaurante que me serve de escritório, abrigo e restaurante, claro.
Claúdio é de Parnaíba, mas vivia em Brasília. Em Julho de 2010 veio para Parnaíba por causa da asma. Só pensa em voltar para o Planalto. Está a juntar dinheiro para a viagem, que é cara (se o preço for o que ele me disse, claro) para uma pessoa que anteontem, por exemplo, ganhou oito reais numa noite (para referência, o salário mínimo é de 620 reais. Enfim, tudo é caro para quem ganha 10% do que vende num restaurante, mesmo que não seja o mais barato do quarteirão). Pedi-lhe para me procurar uma bicicleta, mas ele só encontrava coisas demasiado caras; até que, hey, presto, encontrou a solução: alugava-me a dele, que não a usa porque mora muito perto do restaurante (o qual só abre às cinco da tarde. Algo me diz que durante o dia vai ser ele a avançar na tal piscina de calor, enquanto eu pedalo nela).
Aceitei e hoje vamos negociar um preço. Claúdio contou-me que a irmã dele, que também vive em Brasília, foi pedir ao marido que ele o ajudasse a comprar o bilhete, mas o cunhado ainda não respondeu. Já lhe disse que o aluguer da bicicleta não conseguirá pagar-lhe o bilhete todo, mas espero encorajar o cunhado, reduzindo-lhe o a taxa de esforço.
V
Amanhã a carreira estará completamente capinada, e o primeiro passo dado. Uma viagem de cem li começa com um passo. E já que estamos nas chinesices: metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa.
Vai chover.
VI
É preciso reconhecer que o jantar estava uma porcaria. Fui comer à Beira-Rio, uma zona da cidade (que não é a do restaurante Cornélio) situada, estranhamente, à beira-rio, mas para jusante, cerca de um quilómetro da pousada.
É uma zona cara, e escolhi o restaurante que me pareceu mais baratinho; e nele escolhi um dos pratos mais baratos, "filé com fritas", uma espécie de picapau sem o molho do picapau e, estranhamente, com batatas fritas.
A carne estava rija como um dia de nortada no Guincho, as batatas demasiado fritas e gordurosas. Se alguém conseguisse imaginar as saudades que tenho de uma boa refeição... Parnaíba faz Antigua parecer um Everest da boa cozinha (e é. Que saudades tenho do meu Rum Baba, do Lime & Coconut, do abençoado Sun Ra, do Mad Mongoose, o melhor fish and chips dos hemisférios sul e ocidental, de beber um rum punch no Waterfront.
"Um homem sem dinheiro não tem palavra", li um dia algures. Não recordo se é um provérbio se uma observação pessoal, mas sei que é verdade. Um homem sem dinheiro não pode ter palavra; quem não tem dinheiro hoje não pode pensar no amanhã. (De um ponto de vista estrictamente biológico não deve sequer, mas isso é outro debate.)
Só pensa no futuro quem tem o presente assegurado - e esse futuro mede-se em dias, não se mede em meses. Daqui resulta que se se quer dar palavra a um homem deve dar-se-lhe dinheiro primeiro; e se se quer que ele tenha fé no futuro deve garantir-se-lhe o presente. É um risco, claro. Alguns desses homens continuarão sem palavra mesmo depois de ter dinheiro; e sem futuro, mesmo depois de ter um presente.
Mas não todos, nem mesmo a maioria. É um risco que vale a pena correr. Mais, que se deve correr. Não por razões humanitárias, humanistas, morais (apesar de estas não serem despiciendas); mas porque os benefícios que dos casos que resultam tiramos são incomensuravelmente maiores do que o que eles nos custaram. A satisfação moral vem depois.
Raimundo continua a roçar. De madrugada vendeu cuscus na rua; em seguida foi para o estaleiro capinar. Disse-me que chegaria às nove e meia. Chegou treze minutos depois, e pediu-me desculpa pelo atraso. Cinco minutos depois estava de catana na mão (creio que machete é espanhol). Tinha previsto mais dois homens para trabalhar com ele, mas não apareceram. É Carnaval, ninguem leva a mal? Não é bem assim. Eu levo. Mas as coisas são o que são, e não como nós queremos que elas sejam (não é forçosamente o mesmo do que "como deviam ser").
Hoje há um bocadinho de sol, e o céu ainda tem restos de azul. Só preciso que páre de chover quatro ou cinco dias. Se não chovesse uma semana eu começaria a considerar a existência ou não de Deus. Mas nesta época do ano é impossível; e Deus não existe, de qualquer maneira.
Já o Diabo sim, é uma maçada. Está em cada homem, como diria Riobaldo, de quem ontem me lembrei.
II
O restaurante Cornélio fica na esquina da rua do Pacífico com outra cujo nome não consigo ver daqui [rua do Coronel Pacífico com 7 de Setembro, ou 7 de Janeiro]. Não tem cardápio: só serve caranguejo, a três reais a peça. A rua cujo nome não consigo descortinar fica à beira-rio e da minha mesa vejo a outra margem, logo depois do fim da rua do Pacífico. Vegetação densa, da qual sobressaem palmeiras - ou coqueiros, não sei - altíssimas. As (ou os) ditos cresceram direitos, apesar do vento. A vegetação é realmente densa.
O único problema que até agora vejo no restaurante Cornélio é que da rua Pacífico me chega uma música altíssima, e péssima; e da outra rua idem, mas, naturalmente, diferente. A cacofonia seria insuportável, se não fosse assim em todo o lado.
Com excepção da vista do outro lado do ria, uma nesga da largura da rua, a paisagem é feia. Mas é bonita. Não sei como explicar esta contradição, como diria um ex-marxista. (Talvez recorrendo à autenticidade, ou coisas do género. Prefiro não o fazer: convivo bem com algumas contradições.)
Ou talvez seja consequência deste calor, tão denso como a selva do outro lado do rio, um calor que só as ocasionais rajadas de vento conseguem disfarçar. Gosto dele. Ando muito a pé e tenho por vezes a impressão de avançar numa piscina invisível, uma piscina de calor que me trespassa a pele e se distribui pelo meu corpo como se fosse sangue.
Tudo se transforma em calor.
É preciso viver nos alíseos para perceber a que ponto o vento é uma benção. E a cerveja, claro.
III
Os caranguejos demoram quarenta e cinco minutos a chegar. As músicas não são o único problema do restaurante Cornélio.
IV
Estou bicicletado, finalmente. Aluguei uma GTS (Good Technology Starting, informa uma das placas) Pro-M1 - esqueço decerto uma série de letras e números - por um valor a determinar.
A bicicleta pertence a Claúdio, que conheci em 2010 na pousada e agora trabalha no restaurante que me serve de escritório, abrigo e restaurante, claro.
Claúdio é de Parnaíba, mas vivia em Brasília. Em Julho de 2010 veio para Parnaíba por causa da asma. Só pensa em voltar para o Planalto. Está a juntar dinheiro para a viagem, que é cara (se o preço for o que ele me disse, claro) para uma pessoa que anteontem, por exemplo, ganhou oito reais numa noite (para referência, o salário mínimo é de 620 reais. Enfim, tudo é caro para quem ganha 10% do que vende num restaurante, mesmo que não seja o mais barato do quarteirão). Pedi-lhe para me procurar uma bicicleta, mas ele só encontrava coisas demasiado caras; até que, hey, presto, encontrou a solução: alugava-me a dele, que não a usa porque mora muito perto do restaurante (o qual só abre às cinco da tarde. Algo me diz que durante o dia vai ser ele a avançar na tal piscina de calor, enquanto eu pedalo nela).
Aceitei e hoje vamos negociar um preço. Claúdio contou-me que a irmã dele, que também vive em Brasília, foi pedir ao marido que ele o ajudasse a comprar o bilhete, mas o cunhado ainda não respondeu. Já lhe disse que o aluguer da bicicleta não conseguirá pagar-lhe o bilhete todo, mas espero encorajar o cunhado, reduzindo-lhe o a taxa de esforço.
V
Amanhã a carreira estará completamente capinada, e o primeiro passo dado. Uma viagem de cem li começa com um passo. E já que estamos nas chinesices: metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa.
Vai chover.
VI
É preciso reconhecer que o jantar estava uma porcaria. Fui comer à Beira-Rio, uma zona da cidade (que não é a do restaurante Cornélio) situada, estranhamente, à beira-rio, mas para jusante, cerca de um quilómetro da pousada.
É uma zona cara, e escolhi o restaurante que me pareceu mais baratinho; e nele escolhi um dos pratos mais baratos, "filé com fritas", uma espécie de picapau sem o molho do picapau e, estranhamente, com batatas fritas.
A carne estava rija como um dia de nortada no Guincho, as batatas demasiado fritas e gordurosas. Se alguém conseguisse imaginar as saudades que tenho de uma boa refeição... Parnaíba faz Antigua parecer um Everest da boa cozinha (e é. Que saudades tenho do meu Rum Baba, do Lime & Coconut, do abençoado Sun Ra, do Mad Mongoose, o melhor fish and chips dos hemisférios sul e ocidental, de beber um rum punch no Waterfront.
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