Nunca se sabe por onde começar, não é?, quando as coisas acabam.
O casco de estibordo está a seco; enfim, espero. Certezas só quando for verificar com a maré cheia, amanhã de manhã.
Os macacos hidráulicos são mais civilizados, mas o esforço acaba por ser o mesmo, ou quase. Como são muitos mais pequenos, o trabalho deixa de ser içar o casco e passa para o calçar. É preciso pôr calços muito mais frequentemente, e como tínhamos poucos passámos o dia a jogar uma espécie de Tetris, ou Lego, ou o que quiserem chamar-lhe, com um casco de doze toneladas suspenso na lama.
Enfim, dia é muito: demos volta às duas e meia, mas não parámos para almoçar. Começámos às nove da manhã e foi de empreitada até o casco estar em cima alguns quarenta centímetros. Agora é ver se não abate demasiado, reforçar um calço ou dois, e esperar que seque.
Ao contrário dos jovens deuses, que pensam que tudo lhes é devido, os velhos sabem agradecer. Choveu muito pouco, e quando choveu foi à noite.
Cheguei à pousada exausto. O truque é sempre o mesmo: duche (no quarto cujo chuveiro tem pressão), e depois cama, braços e pernas abertos como no Homem de Vitrúvio (?), ou naquela fotografia de uma inglesa (Tracey Emin? Talvez Lourdes Féria possa ajudar-me) até deixar de sentir o coração. Depois decúbito-fetal (isto existe?) até deixar de sentir tudo; e finalmente a anarquia total: qualquer posição é boa, desde que na horizontal.
O único sítio que encontrei aberto para almoçar foi um bar que tinha três mesas de snooker. Os jogadores eram medíocres, um menos do que o outro. Jogavam a dez reais a partida. O que era menos mau ganhou quarenta num ápice. A carne de sol não estava má.
Os meus sapatos de camurça resistem estoicamente; a verdade é que mereciam morte menos inglória, e espero que a tenham. O resto da roupa anche: as senhoras da pousada lavam roupa como se não lavassem.
Se Deus quiser na segunda-feira à noite estou num autocarro para S. Luiz. Parnaíba fede. Gostaria de ter um bocadinho mais de distância e apreciar isto melhor. Passar os dias na lama (real e metafórica) não é, provavelmente, a melhor forma de o conseguir.
Hoje consegui, finalmente, formular uma - não; a - explicação: não sou capaz de resistir a um desafio destes. Vou ter que aprender.
Não estou a fazer tudo errado. Perdi um quilo, desde que cheguei. O meu médico tinha razão; é melhor beber cerveja.
Chove que Deus a dá.
Parou de chover. O gato de hoje de manhã afinal é uma gata. Veio ter comigo ao restaurante que me serve de escritório, de sala de estar e de sala de jantar, consoante a hora do dia.
Acolhi-a na barriga (por fora, claro), e ela gostou. Pedi restos à cozinha mas não tinham, de maneira encomendei uma porcaria qualquer barata que chegou, como sempre, meia-hora depois, ou mais. Uma empada de galinha, ou coisa que o valha.
O dono explicou-me diplomaticamente que "as pessoas aqui não gostam de animais em ambientes desses", e que "D. armou uma confusão por causa de um gato", e mais "os animais são portadores de doenças" e mais ainda; anuí a tudo, e disse-lhe que sim, que compreendia perfeitamente. "De resto vivi muitos anos em Africa, e lá é a mesma coisa. Nos países pobres as pessoas não gostam de animais. Têm mais com que se preocupar. Bem, o Brasil não é um país pobre, claro, mas em certas coisas...".
Foi um ping pong assim, que acabou com ele a deixar a gata comer desde que fosse num prato descartável; e eu por simpatia (enfim, não só) dei-lhe de comer lá fora, à porta (gostava que ela voltasse amanhã, como ele previa que ia acontecer). Previa é sinónimo de temia, não é?
Não sou particularmente animal lover, mas tão pouco os detesto. E devo reconhecer que aquela gata é linda. Aninhou-se tão perfeitamente na minha barriga que quase tenho pena de a perder.
Chove torrencialmente. Não devia nunca chover se não torrencialmente. É a única chuva aceitável.
Aproveitei a chuva para limpar os sapatos de camurça. São os únicos que tenho, gostava que durassem mais um bocadinho. (Parecia um puto a chapinhar nas poças de água.)
Devia tentar a poesia automática, mas nem para a manual tenho jeito. Falar no verde das paredes e no voo das libélulas, nas qualidades graníticas das caipirinhas, na sensualidade marcial da rapariga que me serve à mesa.
Nada me chateia tanto como as fotografias antigas dos sítios por onde passo. Se gostam tanto do passado porque não ficaram nele? Porque não pôr fotografias do futuro? Seria muito mais interessante.
Chove como se a terra estivesse sem foder há meses.
O casco de estibordo está a seco; enfim, espero. Certezas só quando for verificar com a maré cheia, amanhã de manhã.
Os macacos hidráulicos são mais civilizados, mas o esforço acaba por ser o mesmo, ou quase. Como são muitos mais pequenos, o trabalho deixa de ser içar o casco e passa para o calçar. É preciso pôr calços muito mais frequentemente, e como tínhamos poucos passámos o dia a jogar uma espécie de Tetris, ou Lego, ou o que quiserem chamar-lhe, com um casco de doze toneladas suspenso na lama.
Enfim, dia é muito: demos volta às duas e meia, mas não parámos para almoçar. Começámos às nove da manhã e foi de empreitada até o casco estar em cima alguns quarenta centímetros. Agora é ver se não abate demasiado, reforçar um calço ou dois, e esperar que seque.
Ao contrário dos jovens deuses, que pensam que tudo lhes é devido, os velhos sabem agradecer. Choveu muito pouco, e quando choveu foi à noite.
Cheguei à pousada exausto. O truque é sempre o mesmo: duche (no quarto cujo chuveiro tem pressão), e depois cama, braços e pernas abertos como no Homem de Vitrúvio (?), ou naquela fotografia de uma inglesa (Tracey Emin? Talvez Lourdes Féria possa ajudar-me) até deixar de sentir o coração. Depois decúbito-fetal (isto existe?) até deixar de sentir tudo; e finalmente a anarquia total: qualquer posição é boa, desde que na horizontal.
O único sítio que encontrei aberto para almoçar foi um bar que tinha três mesas de snooker. Os jogadores eram medíocres, um menos do que o outro. Jogavam a dez reais a partida. O que era menos mau ganhou quarenta num ápice. A carne de sol não estava má.
Os meus sapatos de camurça resistem estoicamente; a verdade é que mereciam morte menos inglória, e espero que a tenham. O resto da roupa anche: as senhoras da pousada lavam roupa como se não lavassem.
Se Deus quiser na segunda-feira à noite estou num autocarro para S. Luiz. Parnaíba fede. Gostaria de ter um bocadinho mais de distância e apreciar isto melhor. Passar os dias na lama (real e metafórica) não é, provavelmente, a melhor forma de o conseguir.
Hoje consegui, finalmente, formular uma - não; a - explicação: não sou capaz de resistir a um desafio destes. Vou ter que aprender.
Não estou a fazer tudo errado. Perdi um quilo, desde que cheguei. O meu médico tinha razão; é melhor beber cerveja.
Chove que Deus a dá.
Parou de chover. O gato de hoje de manhã afinal é uma gata. Veio ter comigo ao restaurante que me serve de escritório, de sala de estar e de sala de jantar, consoante a hora do dia.
Acolhi-a na barriga (por fora, claro), e ela gostou. Pedi restos à cozinha mas não tinham, de maneira encomendei uma porcaria qualquer barata que chegou, como sempre, meia-hora depois, ou mais. Uma empada de galinha, ou coisa que o valha.
O dono explicou-me diplomaticamente que "as pessoas aqui não gostam de animais em ambientes desses", e que "D. armou uma confusão por causa de um gato", e mais "os animais são portadores de doenças" e mais ainda; anuí a tudo, e disse-lhe que sim, que compreendia perfeitamente. "De resto vivi muitos anos em Africa, e lá é a mesma coisa. Nos países pobres as pessoas não gostam de animais. Têm mais com que se preocupar. Bem, o Brasil não é um país pobre, claro, mas em certas coisas...".
Foi um ping pong assim, que acabou com ele a deixar a gata comer desde que fosse num prato descartável; e eu por simpatia (enfim, não só) dei-lhe de comer lá fora, à porta (gostava que ela voltasse amanhã, como ele previa que ia acontecer). Previa é sinónimo de temia, não é?
Não sou particularmente animal lover, mas tão pouco os detesto. E devo reconhecer que aquela gata é linda. Aninhou-se tão perfeitamente na minha barriga que quase tenho pena de a perder.
Chove torrencialmente. Não devia nunca chover se não torrencialmente. É a única chuva aceitável.
Aproveitei a chuva para limpar os sapatos de camurça. São os únicos que tenho, gostava que durassem mais um bocadinho. (Parecia um puto a chapinhar nas poças de água.)
Devia tentar a poesia automática, mas nem para a manual tenho jeito. Falar no verde das paredes e no voo das libélulas, nas qualidades graníticas das caipirinhas, na sensualidade marcial da rapariga que me serve à mesa.
Nada me chateia tanto como as fotografias antigas dos sítios por onde passo. Se gostam tanto do passado porque não ficaram nele? Porque não pôr fotografias do futuro? Seria muito mais interessante.
Chove como se a terra estivesse sem foder há meses.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.