26.3.12

Alcântara, Maranhão, Brasil, 25-03-2012 (cont.)

Os dias começam às quatro e meia cinco da manhã; às dez e meia onze é a primeira paragem para comer (se bem Chaguinha e eu tenhamos direito a ovos cozidos logo de manhãzinha. São metidos dentro de uma garrafa de água vazia, cortada com um pequeno golpe lateral e atirada ao mar com um cabo. No B. apanho a garrafa. Até que um dia dos cinco ovos só estava um).

O almoço é farto: consiste invariavelmente numa grande panela de arroz, noutra ainda maior de feijão e legumes; às vezes esta leva carne também. Outras, Tetéu grelha carne "de gado" (de boi) ou frango - para pescadores andávamos fracos de peixe. Pelé queixa-se do que Tetéu em especial e eles todos em geral comem - com uma certa razão: era surpreendente. Eu era acusado de comer pouco - pratos de plástico e colheres cuja lavagem consiste numa breve passagem por água de mar tendem a tirar-me o apetite.

Tudo, sem excepção, é envolvido em impressionantes quantidades de farinha de milho. Alguns comem de cócoras - o mestre e Bernardo; os outros sentados na borda ou onde calha. Colher na mão direita, e uma bola de arroz, ou de carne na esquerda. Com excepção do mestre não resulta desagradável de ver. Mas ele come agressiva, sofregamente, enche muito a boca, fala e ri enquanto come, com a boca aberta. Bernardo vira as costas a todos e come num canto, de cócoras também. Para um velho quase transparente de tão magro ingere quantidades admiráveis.


As refeições são o momento das histórias, claro. Por vezes Pelé apanhava-me sozinho e falava-me da sua tripulação (o mestre e Leo eram do barco, que não pertencia a Pelé, contrariamente ao que ele me fizera crer). "Tetéu é um faz-tudo. Ele sabe fazer tudo. É muito trabalhador, muito. O problema dele é a bebida e as drogas. Gasta o dinheiro todo em cerveja, crack, Rohypnol, tudo. Tem não sem quantas mulheres, um filho de cada uma, tem de pagar as pensões. Às vezes aparece-me em casa às duas da manhã a pedir-me dinheiro para comprar crack, ou cachaça. Trabalha comigo há dez, doze anos (Pelé é impreciso com os números) mas às vezes desaparece meses e meses seguidos. Ou está preso, ou vai viajar sem dizer nada. Depois sou eu que pago as pensões, ou a mãe dele".

"Trabalha muito, é muito bom", repete. "E é honesto. O problema dele são as brigas. É o terror de Luis Correia. Você pode deixar o que for que ele não mexe em nada. O negócio dele é furar pessoas; brigar de faca. É..." Pelé procura o termo, "um desordeiro", conclui. "Mas trabalha muito bem" - isto é verdade, confirmo-o a cada minuto.

"Mas a mim tem muito respeito" - isto também é visível. Pelé goza constantemente com Tetéu: "este quando arranja uma mulher é prá negada - ele levanta ela e a negada é que aproveita", "tem chifres, mas isso não é grave, pois não Tetéu?" e assim por diante.

Tetéu sorri e não responde. Tem uma cara simpática, suave, nada angulosa. Um dia ajudou um pescador a recuperar uns sacos de lagosta, bastantes. O pescador tinha-os perdido no mar e Tetéu mergulhou - também é mergulhador - e encontrou-os. Para lhe agradecer o pescador deu-lhe um montante que Tetéu achou pequeno, comparado ao valor do achado.

Uns tempos depois levou quatro tambores vazios para casa do dito pescador e arrumou-os num canto do jardim. Besuntou os braços com gasóleo e disse ao outro que tinha "encontrado" os tambores, estaria ele interessado em comprá-los? O pescador disse que sim, não foi sequer verificar o conteúdo.

"Leve-o consigo, Luís, leve-o consigo para o Caribe".

(Tetéu tem uma propensão para histórias com tambores. Um dia encheu um tambor com 90% de água e 10% de óleo e foi vendê-lo a um mecânico. Este verificou o conteúdo, mas o óleo já tinha subido à superfície. Teve que fechar a loja, coitado, porque todos os motores a que mudava o óleo gripavam, misteriosamente. Não percebi os antecedentes deste episódio).

A higiene a bordo é, como dizer, escassa. Os restos de comida são lançados para cima do convés - andar um metro até à borda é cansativo; as pessoas assoam-se com os dedos - excepto, como mencionado, Bernardo, mais delicado  - e limpam-nos onde calha, quando os limpam; isto inclusivamente quando estão a comer ou a preparar comida. As necessidades fazem-se na borda, à vista de todos.

A surpresa, depois disto tudo, vem da preocupação de todos com as lavagens. Lavam-se normalmente na hora da refeição da tarde, com água doce de um grande tambor de plástico que vem de Luís Correia, ou no trapiche, quando estávamos em Areinha. Uma das poucas coisas que faz Chaguinha largar o leme é a lavagem de dentes matinal.

O pai de Pelé tinha uma frota de trinta e um barcos, que utilizava para pescar e para ir à Guiana Francesa buscar tabaco e whisky que depois revendia no Brasil. É uma actividade nobre, já por aqui o disse. Pelo que percebi esses foram os primeiros passos na riquíssima carreira profissional de Pelé: pescador, mergulhador, contrabandista, reparador de barcos, mecânico, comerciante de motores marítimos usados, proprietário de um camião (vai agora comprar o segundo, para ir vender a Belém sal que compra em Parnaíba), armador - para além de coachie de dois pescadores adoráveis, claro. Empatizo profundamente com ele e penso, não sem um certo orgulho, que é recíproco.

Pelé não conhece a entrada de São Luís: "só conheço os portos onde não há capitanias". Só quando chegámos percebi a preocupação permanente em que vivia da "capitania". Por vezes perguntava o caminho, ou uma distância, a outros barcos de pesca - e todos os diálogos, sem excepção, incluíam uma menção à capitania. Num país em que a legislação proíbe - de resto como em Portugal, decerto uma coincidência - os reboques de serem feitos por embarcações que não sejam rebocadores; que exige duzentos papéis por tripulante embarcado; que tem exigências de material que já levaram, por exemplo, Chaguinha à falência duas vezes, Pelé reboca-me numa embarcação na qual nada funciona e nenhum - repito nenhum - tripulante tem os papéis em ordem.

Quando nos separamos somos amigos. Tetéu e Chaguinha insistem em dar-me os respectivos números de telefone. Tetéu promete-me uma refeição de lagosta, quando eu voltar a Luis Correia. Chaguinha ficou de me encontrar o número de telefone de um vendedor de material electrónico de Fortaleza que, se é quem eu penso, conheci em Portugal há muitos anos e gostaria de reencontrar.

Durante quatro dias vivi numa espécie de Tortilla Flat flutuante. Foram quatro dias fascinantes, belos, cansativos, maravilhosos. A melhor coisa da vida é viver, e a melhor coisa de viver são as pessoas.

E o mar, claro. 

1 comentário:

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.