«Bom djina!»
O dia começa com uma lição de português de Portugal e um agradecimento: «obrigada por me dizerem "good morning" na minha pátria». S. viveu alguns meses no Brasil, daí o "dji". Pelo "n" é que não esperava, mas também me surpreendeu quando um dia exclamou, ao meu lado, "fuda-se!" (trabalhou com três madeirenses que lhe ensinaram coisas que nem eu, que cresci com elas na ponta da língua, me atrevo a repetir aqui). Quando S. acabou de mostrar a sua mestria no nosso vernáculo disse-lhe «Parece que não há mais nada que eu te possa ensinar, mas quero aprender a dizer umas asneiras em afrikaans». Fui imediatamente avisada: a segunda pior coisa que podem fazer a um sul-africano é falar da sua mãe -- no fundo, como um pouco por todo o mundo, as mães parecem ser santas até em horas de maior exaltação, a Virgem Maria que o diga. A pior é chamar-lhe "kaffir", que à letra significa "descrente", mas é o termo mais racista que existe -- uma visita à omnisciente Wikipédia explica as origens da palavra e fala, até, dos "cafres" de Camões. Depois das ofensas maiores os rapazes ensinaram-me as menores, e reparo que a sua preferida é "poes", que se diz "puss" -- a quem percebe inglês a pronúncia não dá grande margem para equívoco quanto ao significado, começa por "c" e acaba em "ona" --, dizem-na por tudo e por nada, mas sobretudo quando lhes ocorrem pequenos acidentes, como o derrame de um copo de Rum & Ginger no colo ou uma pancada com o dedão do pé num armário qualquer, desporto comum entre as hospedeiras, mas cada vez mais praticado por marinheiros que ajudam a cuidar do interior dos mega-iates.
Trabalhar num é, provavelmente, a pior maneira que existe de viajar. Convivendo com três sul-africanos durante um mês aprendi mais sobre a África do Sul do que sobre Saint Martin estando cinco dias in loco. Tive duas folgas este fim-de-semana, mas a exaustão não me permitiu observar muito, ou pelo menos ter um olhar crítico sobre o que observei. Poder ir a um supermercado comprar um desodorizante, por exemplo, e ter de andar 50 metros fora da marina para deitar o lixo parecem luxos quando se vem a terra. Depois de um charter, em terra tudo é maravilhoso, até a maior porcaria, como o jantar que comemos na sexta-feira num restaurante supostamente bom e que me custou os olhos da cara. Em terra, depois dos assuntos banais resolvidos, só sabemos voltar para o mar. Não é que não queiramos ficar, é que o mar é tanto que num barco se torna fácil viver com pouco. O muito cansa e o pouco parece muito -- no meu caso, é mesmo: neste iate não há nada que falte, desde Camembert a salmão fumado da melhor qualidade (faltam azeitonas decentes, mas isto é um iate de luxo, não é o meu país).
O pseudo-charter (porque foi com familiares do dono do barco) acabou na sexta-feira, felizmente. Se tivesse durado mais um dia teria entrado em curto-circuito, e a minha amiga amiga S., de quem me fui despedir ao aeroporto Princess Juliana no domingo, teria feito um juízo ainda pior sobre a minha pele mutilada por erupções vulcânicas de stress (como se «horrível» não estivesse já num patamar bastante elevado de desmoralização). Fiz as pazes com o filho único mimado -- não sem depois me ter convencido de que não valeu a pena -- e recebi uma gorjeta que não esperava e que gastei em cosméticos. O que passou passou, embora me tenha escapado muito para contar sobre gente rica -- é igual a nós, mas com muito mais dinheiro.
Agora estamos três, durante as próximas duas semanas, a preparar o barco sem o capitão a bordo, que foi de férias. Amanhã faço o meu primeiro quarto, que não é mais do que vigiar o barco enquanto os outros saem, se decidirem sair. Somos só três porque o Ja. deixou o barco no domingo às seis da manhã, rumo a casa, na África do Sul. Só eu e o outro Ja. (que passarei a tratar por Ja, já que passa a ser o único), ambos no nosso primeiro embarque, nos fomos despedir dele à doca, porque não nos quis no aeroporto. Hoje ao almoço falámos sobre isso. A gente do mar parece desligada. Para o capitão e o imediato, o rapaz adorável, divertido, trabalhador e prestável que deixou o barco para sempre foi uma brisa que passou sem que as plantas sequer se apercebessem, elas que percebem tudo. Pergunto-me -- ou pergunto-te -- se também eu serei um dia tartaruga e ganharei uma carapaça assim. Percebo-a e acho, ao mesmo tempo, uma condição bonita, por ser forte, e triste, por ser condição: alguém que passa a vida a ir-se embora e a deixar aqueles que ama tem de aprender a não se magoar quando deixa e quando é deixado, não é?
Sábado e domingo foram dias de descanso e de aeroporto. Podia dizer que foram dias de praia e seria o mesmo. Quando cheguei ao barco no sábado, ao final do dia, o capitão perguntou-me «Então, foram à praia?» e eu respondi «Não, fomos ao aeroporto». A praia Maho é, provavelmente, a praia mais fixe do mundo. É ela que lhes vou mostrar em maior detalhe no próximo post.
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