"Os patrões" só bebem Evian. É a pior água engarrafada do mundo.
Hoje tenho tempo, mas não me apetece escrever. Sobretudo não me apetece escrever tanto quanto me apetece casar -- é, decerto, um transtorno de personalidade. Devia apetecer-me escrever, porque um diário é como um casamento: depois de consumado, está-se comprometido todos os dias, mesmo que não se queira. Um diário e um casamento podem ser fotografar a mesma paisagem ou escrever a mesma história todos os dias, tarefas entediantes para quem as leva a cabo, mas sempre interessantes para quem vê o seu resultado. Anne Frank é o que se sabe. Raymond Queneau escreveu a mesma história de 99 maneiras diferentes e conseguiu uma obra deliciosa chamada "Exercices de style", que prova tanto a insignificância como a importância de um ponto de vista. Aqueles tipos que se fotografaram durante anos ao espelho da casa-de-banho e se publicaram na Net não estavam, aposto, felizes por fazê-lo todos os dias. Às vezes morria-lhes um gato ou um avô, eram despedidos ou tinham dores nos rins, mas honraram o compromisso. Um casamento e um diário são na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte ou o tédio nos separe. A gente romântica em geral e pirosa em particular diz que o amor move montanhas, mas é mentira. Se nem Maomé consegue movê-las (ou vai até elas ou espera que até ele venham), como poderíamos nós, meras embalagens de amor, mover o que quer que fosse? O amor é que nos move, e tanto nos faz reaccionários como audaciosos. Enfim, somos nós que nos fazemos, consoante o amor que temos ou que nos têm.
É o tédio, o tédio que não controlamos que move as montanhas -- a premissa foi defendida por pelo menos dezassete filósofos conhecidos e dezanove pensadores anónimos, mas só agora a sinto e lhe vejo o sentido, a subscrevo. Estaria, por isso, a ser desonesta se não assumisse que não foi só por amor que há exactamente dois meses aterrei em Antígua; foi, também, por um aborrecimento profundo com a vida que levava e, sobretudo, comigo mesma.
"Os patrões" estão a ouvir uma música polaca muito má. Ele joga xadrez no salão com K., o chef que trouxe da Polónia. Um no sofá e o outro no cadeirão em frente, ambos esgueirados sobre a mesa de café onde está o tabuleiro, com as mãos direitas sob os queixos, ignoram a vista panorâmica da noite de Nonsuch Bay, preta clara (o céu, o mar) e preta escura (tudo o que não é céu nem mar). Se conseguir observar a baía amanhã, entre engomadelas e camas de lavado, talvez consiga perceber porque lhe deram este nome. Há, de facto, alguma coisa que não parece de Antígua, pelo menos. Sinto-me, aqui, longe desta ilha pela qual estou apaixonada, apesar de poder nadar até ela e apanhar um táxi para o rum punch* do Junior dez minutos depois (a estrada parece longe). Sinto-me longe de alguns dos dias mais felizes da minha vida (que foram quase anteontem). Felizmente, o vento forte num barco (mesmo um barco feio e a motor como o J.) é uma bênção: impede-nos de ouvir os nossos próprios pensamentos.
Recuso-me a falar do passado. Isto é um diário, por isso hoje e talvez amanhã. Hoje o amor está em mim e amanhã ainda estará. O seu objecto, com quem partilho este diário, está no Brasil, porque lá existe um barco. Dêem a um marinheiro uma promessa de mar -- um barco por construir, por exemplo -- e uma mulher -- qualquer uma, até pode ser consensualmente a melhor do mundo --, e ele escolhe a primeira, que não é ainda, mas pode vir a ser mar. Podia pedir que me salguem, que me sequem, mas prefiro comprar um veleiro. É mais ou menos para isso que agora lavo sanitas e faço seis máquinas de roupa por dia. Mais ou menos: ter passado de um escritório sem janela para um escritório com janela em Lisboa não apagou o tédio e a verdade é que prefiro a escravidão bem paga à mal paga. Enfim, escravidão é um exagero, porque se descansa. «Não és pago por aquilo que fazes aqui, mas pela vida que deixaste para trás», diz-me Ja., marinheiro de 20 anos com responsabilidade de 60 e bondade de mil. Eu faço que entendo, como se já tivesse casado.
Tenho algumas saudades de almoçar ao sol num banco do Jardim da Estrela, porque aqui às vezes mal vejo o Sol. Mas quando o vejo é como se fosse ele a ver-me, sinto-me incinerada. O tédio move montanhas e o calor, uma espécie de amor do mundo, deixa-nos movê-las. Somos água e calor. Suor, portanto sal, também. Somos mar?
*Encher um copo com gelo, preencher um terço do espaço vazio com bom rum, meio terço com bom sumo de laranja e um terço e meio com bom sumo de ananás. Temperar com noz moscada e Angustura Bitter, se for para o Luís. O que é doce nunca amargou.
welcome abord... susana villar dixit
ResponderEliminarTatiana, parabéns.
ResponderEliminarLuís, arranjaste uma parceira (de escrita, que do resto não sei) à altura.
:)