10.3.12

Sonhos tropicais

I
Um golfinho saltava à corda com a ponte. Esta imagem é improvável: a ponte era sobre um rio, num sítio onde já não chegava a maré.

Mas o golfinho era um trânsfuga. Vira um dia um filme chamado Stalker e tomara-se de ideias.

Usava a ponte como se fosse uma corda.

Pessoalmente quero que as pontes vão para os raios que as partam; e os golfinhos também, mas menos. Gosto mais destes do que daquelas. As pontes são uma seca. Fazem-me pensar na Madre Teresa de Calcutá, ou naqueles "missionários" que vão para África fazer pontes. Missionários entre aspas porque os verdadeiros missionários não constróiem pontes. Tratam, educam, fornicam um bocadinho, alguns, e são mortos, muitas vezes.

São mortos por causa da cobardia, da prepotência e do complexo de pequeno ditador de alguns grandes idiotas. Estou-me nas tintas para os verdadeiros missionários, excepto quando morrem.

O golfinho continua a saltar à corda com a ponte.

Ainda vai espetar-se contra um dos pilares. É bem feito.

Os missionários também é bem feito. Ninguém os manda ir para África educar e tratar e fornicar (um bocadinho).

Também havia missionárias, no grupo. Espero que não tenham sido fornicadas antes de morrer. Ou então que tivessem recebido a morte como um curto mas intenso orgasmo com o Senhor (a maiúscula é delas, mas peço-a emprestada).

O golfinho cansou-se e está agora a masturbar-se na praia do rio, com aquele ar estúpido e sorridente que os golfinhos têm, como se fossem enigmáticos, profundos ou estivessem simplesmente contentes. Os clientes do café fingem não ver e assobiam para o lado.

A., B., C., D. e E. ajoelham-se à minha frente, abrem-me a braguilha e começam a fazer-me uma felação. "My lord", oiço. Deve ser A., sempre teve a mania de que era inglesa. "Vamos chupar-te esses missionários todos cá para fora, um a um", diz outra. "Calem-se e chupem", respondo.

Nunca fui o objecto passivo de uma felação colectiva. "Todas as relações são colectivas, diacronicamente colectivas", penso. "Há alguma relação entre relação e felação?"

Já por aqui disse como se devem fazer felações; não volto a dizê-lo. Também já disse que não se deve deixar morrer missionários na selva africana. Não voltarei a dizê-lo, se Deus quiser (a maiúscula é Dele, não minha).

A ponte caiu em cima do golfinho. Provavelmente morreu, com aquele ar estúpido e satisfeito dos golfinhos.

II
Hoje o médico perguntou-me se bebo muito. "Não. É raríssimo chegar a uma aspirina. Uma vez por ano, talvez". "E a duas?" "Você é médico ou é voyeur?", perguntei. "Quando muito entendeur".

"Tenho pena", acrescentei depois de uma pausa à la Raymond Chandler.

"Não tenha".

"E os missionários, acha que tiveram aspirinas antes de morrer?"

"Mande os missionários para o diabo e beba cerveja. É melhor do qe vinho, ou whisky".

"Não gosto de cerveja".

"Óptimo, ainda melhor. Ah, e lembre-se das missionárias. Uma masturbação por semana in memoriam".

"Você e a porra do latim".

"Então só a sarapitola".

É por estas e por outras que gosto do meu médico.

III
Um hotel asqueroso no centro de África. Não sei onde dormir: a cama, o chão e a banheira estão igualmente sujos, imundos. Opto pela cama, porque tinha um saco cama. E. encosta-se a mim e faz movimentos frenéticos com a zona pélvica. Parece um cão face a uma cadela no cio. Digo-lhe que se enganou de história. "Não sou pelas diacronias."

"O amor  é diacrónico".

Entretanto olho para a cama imunda e vejo os missionários todos, eles e elas, numa gigantesca orgia. Mas eu estou na cama, não sei de onde olho.

"Tout est bien qui fini bien", diz E.

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