11.5.12

Bequia, Grenadines, 24-02-2011


Comecei a escrever estas linhas nos Deux Pitons; continuo e acabo em Bequia (pronuncia-se Bekway, nunca é demais lembrá-lo).

Se eu tivesse o pior emprego do mundo seria fácil descrever os cinco últimos dias. Infelizmente (enfim, “infelizmente” deste ponto de vista) não tenho; tenho o melhor emprego do mundo. E assim é muito difícil descrever tudo.

O grupo chegou sorridente, amável, afável. “Conhecem-se todos bem”, pensei. “Não é a primeira vez que navegam juntos”. Feitas as apresentações, escolhidos os camarotes (à sorte, os três que restavam: eu já tinha escolhido o meu, do lado estibordo porque as tradições são para se respeitar), depositadas as bagagens fomos jantar – ao Mango, claro. Não é o melhor restaurante do Marin, mas é a melhor forma de colocar as pessoas “no banho”, como dizem os franceses, tão bem.

Ficou combinado que decidiríamos os pormenores da viagem no dia seguinte, pelo que ao jantar se falou de tudo e mais alguma coisa menos de percursos, trajectos, datas e quejandos. Dos seis, só um fala inglês razoavelmente; três falam assim assim a cair para o muito pouco; e dois não falam de todo. Mas o bom humor continuou. Eu esperava um bando soturno, cansado da viagem, desconfiado; fiquei servido: saíu-me o contrário.

No dia seguinte tive a surpresa da minha vida: um grupo de alemães que me diz, depois do meu discurso sobre as ilhas e o esquema de viagem e não sei que mais “escolhemos o primeiro destino da viagem. Os seguintes, vamos escolhendo onde estivermos”; não é só que isto não corresponde à imagem que todos temos dos alemães - é que não corresponde de todo à minha experiência daquele povo.

Domingo foi também dia de compras e à noite fiz-lhes um Colombo um bocado improvisado. Tive sorte (e eles também): foi o melhor Colombo que fiz até hoje, apesar da improvisação. Ou talvez por causa dela: em vez de colombo usei caril... (e acertei finalmente na quantidade de açúcar, mas isso são contas de outro rosário).

Dupla sorte: durante o briefing o dono da empresa disse-me que não tinha que me preocupar com a solidez do barco, porque realmente os primeiros modelos saíram um “bocadinho fracos”, mas forma modificados depois; e o JINGLE, apesar de ser dos primeiros modelos, foi modificado também. Boa notícia: não tenho de andar rizado desde que o tipo dos ventos arrota com um bocadinho mais de força.

E segunda-feira largámos, como previsto, rumo aos Deux Pitons, em Sta. Lucia. É onde escrevi estas linhas. É aqui que se torna difícil explicar que tenho o melhor emprego do mundo. Mas enfim: difícil não é impossível, e nada impede de tentar, quanto mais não seja. Começo pelo ambiente a bordo, porque ou eu me engano muito ou vai ficar assim até ao fim. São três casais que se conhecem há muito tempo, e já fizeram cruzeiros destes no Mediterrâneo e no Báltico. A forma de comunicação mais frequente é o riso – sobretudo quando uma das senhoras fala. Cada vez que abre a boca todos se desmontam a rir. Infelizmente é uma das que não fala inglês de todo, e os outros estão demasiado ocupados a rir para traduzirem o que quer que seja. São todos de uma simpatia inexcedível; integraram-me como se eu tivesse estado nos cuzeiros todos que fizeram. Está tudo dito.

Não, não está: um deles é mixer de cocktails, ainda não percebi se amador se profissional. Agora sim, está tudo dito.

Saímos às nove da manhã, ou nove e meia, como previsto; força 4 pela alheta. O barco não anda, ponto final parágrafo. Os cascos têm barbas de velho muçulmano, e quando chegamos aos 8 nós – enfim, não chegamos. Ficamos-nos pelos sete, e às vezes 7 e meio. No que diz respeito a velocidade estamos conversados. Eles ainda não sabem, mas nas Tobago Cays espera-os uma sessão de esfreganço de cascos - pelo menos espero.

Chegámos aos Deux Pitons depois de rasarmos a baía anterior (Soufrière) para escolhermos onde fundear. Foi unânime: Deux Pitons. Deux Pitons para sempre.

Os montes, montanhas ou o que for que  dá o nome à baía são duas formações rochosas de origem vulcânica, uma com 777 e outra com 743 metros de altitude que caem directa, verticalmente no mar. Vistos de longe, os Deux Pitons são uma experiência estética; de perto - de debaixo deles - são uma experiência metafísica, existencial, religiosa, telúrica, mística. A baía é profunda - estamos a 100 metros da praia e tenho 60 metros de fundo - pelo que a água do mar é azul de alto mar. Combinado com o verde que nos rodeia - só não há vegetação em alguns bocados mais rochosos e absolutamente verticais das montanhas - tenho a sensação de estar no meio das forças todas da terra: o mar, as montanhas, a vegetação, o vento.

Um amigo tinha-me dado, ainda no Marin, o contacto de um tipo local que faz refeições e organiza passeios pela ilha. Encomendámos-lhe um jantar e um passeio. 60 euros por pessoa (a multiplicar por seis. O skipper não paga). O jantar dava aproximadamente para uma tribo de 50 pessoas em jejum há dois meses: frango, peixe (bonito), arroz, legumes locais, massa, salada – tudo isto em quantidade para dez pessoas, cada uma das coisas por si. Acompanhado por vinho tinto, branco, precedido por uma série de cocktails e sucedido por um rum seco; mais uma faceta da natureza  a juntar-se às outras todas.

Raramente vou nos passeios a terra; a terra chateia-me, não a compreendo e acabo sempre por me aborrecer. Foi o que aconteceu neste: o jardim botânico era lindo e de uma riqueza fantástica, mas as quedas de água banais e o vulcão não acrescenta nada a quem esteve três anos nos Açores. Contudo a tripulação adorou. De cinco em cinco minutos ouvia "Wunderbar. Es ist schön, schön. What a fantastik tay, what a fantastik tay".

Dia que acabou comigo a tomar banho nos tanques das quedas de água, a olhar para o Petit Piton e a pensar que tenho o melhor emprego do mundo, finalmente.

Na viagem para Bequia, Bernie - o homem dos cocktails - escorregou e fez uma ferida na cabeça. Pelo que fiquei a conhecer também o hospital da ilha (Bequia é uma ilha com 18 km2. A "cidade" chama-se Port Elizabeth). Fomos atendidos mal chegámos por uma médica que estava sentada à porta e fez um trabalho que à primeira vista me parece soberbo. Vamos ver como cicatriza. O acidente ocorreu quando nos preparávamos para rizar. Esperei um monte de recriminações, mas só ouvi elogios - a verdade é que ele escorregou, e contra isso não posso fazer nada. Limitei-me a pôr um bocadinho de ordem na confusão que se seguiu, e pouco mais. Os primeiros tratamentos foram feitos pela mulher - a senhora que desmonta os outros à força de gargalhadas - que não o largava. Tudo o que tive de fazer foi tentar chegar o mais depressa possível a Bequia - e chegámos aos oito nós.

O que me fascinou no hospital - uma construção térrea mais pequena do que muitas casas de férias que conheço - não foi apenas a beleza ou a eficácia da médica (talvez devesse usar a ordem inversa...). Quando quis saber quanto custava o tratamento a senhora disse-me que não cobravam dinheiro, mas aceitavam donativos. Perguntei-lhe do que necessitavam mas as explicações foram demasiado vagas. Pelo que hoje na farmácia, depois de uma consulta à "Finanz Direktor" sobre o valor da donação (acordámos 50 euros, nos quais eu também participei)  perguntei à farmacêutica qual a sua opinião sobre as necessidades do hospital - e ela fez o mais racional: telefonou à médica. Levámos os remédios e voltamos ao hospital daqui a uma semana, para tirar os pontos. Felizmente a data calha bem com o cruzeiro - três antes do fim do charter.

Não me canso de Bequia. Hoje descobri que não sou o único: há inúmeros marinheiros que decidem vir para aqui quando acabam a vida de mar, ou pelo menos a vida de viagens. Ou seja: um tipo cansa-se de tudo, e descansa em Bequia.

Escrevo do primeiro andar do hotel onde há sete anos vinha para a net. Chama-se Gingerbread. À minha frente, metade da área da janela é ocupada por uma copa de palmeira. A outra metade, em partes muito desiguais, pela água, pela montanha e pelo céu. Está calor, mas o vento, o bendito vento refresca tudo. Gosto de Bequia. Nunca me cansarei do que faço, mas quando me cansar de tudo o que não fiz virei para aqui, descansar.

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