Uma palavra um incêndio um fósforo uma praia um beijo que nada consegue apagar. Nada, todas as palavras todos os silêncios todos os mares todas as vidas.
A primeira coisa que uma gaivota come a um homem que está no mar são os olhos. Melhor usar óculos, se por acaso caíres ao mar.
A praia arde, é um deserto, à noite as praias disfarçam-se com grandes fogueiras deitadas lado a lado.
O desesperante peso do vazio.
Get the fuck out of here disse-lhes mas elas ficaram, as putas das gaivotas, a chuva não pára o incêndio continua, as gaivotas rondam.
Duas pedras para atirar às cabras quando me vierem para os olhos.
Disparate. Uma pedra.
Disparate. Outra pedra.
Ninguém consegue fugir das gaivotas mesmo encharcadas em Mount Gay aprenderam a voar bêbedas, aprenderam as manhas do silêncio.
Stay put, don't run away, steady as she goes protege os olhos cheira a queimado se não vires as chamas está tudo bem. O vento arde em grandes labaredas. As moscas queimam-se quando brincam com o fogo. Não brinques com o fogo. Não brinques. Não te queimes.
Não brinques no deserto.
Comia injustiças ao pequeno almoço e infortúnios ao chá das cinco com scones e marmelada.
Esquece as gaivotas, é a alma que deves visar com essas pedras.
Do it. Do it. Do it. Não és homem não és nada não és homem não és nada não és homem não és nada. Um homem é um homem e um gato um bicho. Do it.
Fá-lo. A fala do falo fá-lo falar. É falaz e falha. A fala do falo ficou sem voz. O galo calou-se. Comia galinhas ao pequeno-almoço sem sequer precisar de as ou se embebedar. Agora vêm os pintos debicar nele, na fatigante vastidão do deserto em chamas. Estou farto de chamas de deserto e de gaivotas.
Constrói uma barragem e guarda as palavras todas lá dentro. Não deixes escapar nem uma.
Murmurei-lhe, mas ele não respondeu. Já não tinha olhos. Do it do it do it. Fá-lo, velho galo. Eu calo-me.
Esta é a minha gente. Tenho uma gente. Pertenço. These are my people. I belong. Esta és mi gente. Ce sont mes gars. J'appartiens. Um navio à deriva pertence. Um navio fundeado pertence.
Em terra um sorriso preenche uma cidade mas o mar precisa de muito mais do que um sorriso. Um cabrão, o mar. Fuck it, põe-no de costas para ti, mãos nas mamas e entra por ele adentro, entra entra entra. Entra.
Gosto do infortúnio, quando era miúdo batia-lhe punhetas todos os dias. Uma por dia. Mas depois conheci a injustiça e troquei-o por ela. É pena. Um bom infortúnio atrai multidões, enche estádios de futebol, popula cidades inteiras, enche campos de refugiados, faz movimentar milhares de IDP. A injustiça é mais maneirinha, mais modesta, mais discreta.
Por isso fugi para ela, ateei fogos nas praias, comi olhos às gaivotas, fodi o mar fiz minetes às estrelas encharquei-me em rum whisky cerveja you name it enchi barragens de palavras em chamas, deambulei nocturnamente por ruas vazias.
Tudo por uma boa injustiça, quentinha acabada de sair do forno, fremente como um seio que há muito não é tocado.
Do it. Do it. Do it.
- Não devemos atribuir às coisas mais importância do que elas naturalmente têm.
- Define naturalmente.
- Neste contexto, naturalmente seria um pelicano a entrar no mar.
- Neste contexto seria começar o dia a dizer amo-te.
- Neste contexto seria mergulhar numa piscina de gelo e badar os 400m livres.
- Neste contexto seria comer uma gaja na mesa da cozinha, tendo cuidado para não lhe sujar o avental.
- Neste contexto seria olhar para uma jovem mãe com um bebé ao colo e perguntar-lhe como fez isso? Como teria ela feito aquilo?
- Neste contexto naturalmente não existe, é uma invenção de um marinheiro apeado num bordel das Filipinas.
- Conheço um marinheiro que tem uma mulher em cada porto.
- Só uma? Deve ser maricas.
- Não estás a perceber. Conheço um marinheiro que um dia fodeu o mar.
- Todos o fodem; depois são fodidos, à vez, como os cavalinhos a subir e a descer no carrocel.
- Não estás a perceber. Conheço um marinheiro que cita Blake às putas. Mas exige que elas sejam surdas, porque tem vergonha de ir para os bordéis citar poemas em vez de foder.
- Como é que ele sabe que elas são surdas?
- Não ligam nenhum ao que ele diz. Sentam-se na borda da cama e dizem móni móni móni. Se não fossem surdas ficariam emocionadas e foderiam de borla.
Entretanto um abutre entra em cena, envolto num pavilhão inglês que roubou de um navio fundeado na baía.
Há abutres em todo o lado. Até no mar.
Conheço um país onde não há abutres. Chama-se Amor, tem fadas madrinhas vestidas de cor-de-rosa, anjos com flechinhas e broches logo de manhã.
Também o conheço. Já vivi nele.
É preciso comer. É preciso comer. É preciso comer.
Vai comer as gaivotas, não tens estaleca para comer abutres. E não te esqueças dos óculos.
Falmouth Harbour, 24/02/2013
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.