11.3.13

Corpo avulso

O ar está pesado; impossível respirar. Puxo os pulmões para fora e encho-os à mão. Acontece muitas vezes. Uma sorte ter um corpo desmontável, fácil de reparar. Aproveito para tratar da orelha interna: um escopro e um martelo resolvem o assunto. Para os pulmões foi necessário ir a bordo buscar uma bomba de encher dinghies. Passada a primeira urgência ponho a bomba no pé, o seu lugar, e continuo, ritmicamente. Os alvéolos parecem em bom estado, como sempre; pelo menos aos meus olhos leigos.

A pele foi-me arrancada há muito tempo. Passeio-me em carne viva, a mais pequena coisa provoca-me indescrítiveis acessos de febre. Felizmente resisto melhor à dor física do que à psíquica (nada me atinge mentalmente, daí a falta de defesas naturais).

A cada passo que dou arrisco uma infecção, a morte. Mas lá vou resistindo, sem ajuda médica - aprendi a viver sozinho, a convivência com outros seres humanos era-me doentia. Ou seria eu o doente? A minha carne é pegajosa, mas é limpa regularmente: os pulmões vêm para o exterior pelo menos uma vez por semana. Apanham ar. O problema da orelha interna é novo. Penso tê-lo resolvido agora, de uma vez por todas. Talvez possa deixar de ouvir algumas coisas. Talvez; seria uma sorte, ouvir como dantes amava: porque e quando quero. Quando frequentava as pessoas - sobretudo as mulheres - tinha muitas discussões com elas por causa disto. Ama-se porque se quer amar; não se é vítima do amor, é-se mestre. Senhor, se preferirem.

O mesmo se passa com o ambiente sonoro. Nada como eliminá-lo quando queremos. E ligá-lo apenas para o que vale a pena: a Ressurreição de Mahler, por exemplo. Certos madrigais de Gesualdo, cânticos de von Bingen, a Viagem Magnífica por (ou de?) Maria João Pires, Glenn Gould, uma peça de Cecil Taylor. Lembro-me também com prazer de alguns gemidos, alguns suspiros, do ligeiro marulhar da água num casco que avança contra o vento, o fremir longínquo das folhas das palmeiras numa praia tropical, acariciadas pelos ventos alísios. Sons que poderei, com sorte, continuar a ouvir, eliminando a horrorosa cacofonia das vozes e desejos humanos.

Posso virar-me do avesso quando quero, e pôr-me do direito outra vez em menos de um fósforo (enfim, se o fósforo for grande, às vezes; nem sempre). Tenho um corpo desmontável, sou feito de peças avulsas.

Para além desta não tenho outras qualidades (no sentido de características; um corpo desmontável não é uma qualidade). Nunca tive. Sou o que sou e é tudo o que sou, como dizia a personagem de uma banda desenhada infantil há muitos anos. Muitos, tantos que eu ainda tinha pele, ainda acreditava nas virtudes redentoras da música (e da arte em geral), ainda cria que um dia o mundo seria um lugar no qual poderia viver inteiro. Hoje sei que não: só um corpo desmontável me permite sobreviver. Posso alugá-lo às peças: um dia o fígado, por exemplo. Outro a pila; os olhos, os dedos. Comedidamente: fiquei sem pele porque a cedi vezes de mais. Agora não alugo orgão nenhum mais de uma vez por semana.

Espero ansioso o dia em que possa fazer a mesma coisa à mente. Ou melhor, aos seus produtos. Alugar emoções, sentimentos, memórias. Faria uma fortuna, com as memórias e as emoções. Emociono-me muito, e muito facilmente. Só preciso de criar defesas mais fortes do que as que tenho hoje, mas isso não deve ser difícil.

Enfim, para que quero uma fortuna? O dinheiro nunca me fez correr, excepto para o gastar quando o tinha. Agora uso-o sobretudo na manutenção do corpo. Como bem, saudavelmente. Durmo as oitos horas por noite que o médico recomendou. Não abuso do rum. A pila deixou de ser utilizada para fins pessoais ainda antes de ter ficado sem pele. Em breve, se tudo correr bem, terei um ouvido interno desligável à vontade. Aposto que há um mercado para isso. Quem não está farto da penosa babugem dos nossos colegas humanos?

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