12.3.13

Vidas

Uma vida é uma espécie de placa tectónica dentro da qual nos movemos sem que, muitas vezes, nos apercebamos de que ela também se move, ou da direcção desse movimento.

Já vivi muitas vidas: oficial da marinha mercante, emigrante ilegal e depois legal na Suíça, tripulante e skipper de embarcações de recreio, empresário de insucesso (a taxa de insucesso é de 100%, feito pouco comum; pelo menos no país de sucesso que Portugal é), trabalhador humanitário em África, de novo empresário, de novo skipper (isto se definirmos as vidas pela ocupação profissional, o que até agora tem sido o meu caso. Mas há outras formas de as definir).

Ao contrário das verdadeiras placas tectónicas, as da vida voltam para trás, derrapam, procuram-se; tal como elas, encavalitam-se umas nas outras e por vezes produzem tremores de terra (ou de alma, nas pessoas que a têm).

É muito difícil definir exactamente como ou quando acaba uma vida e começa outra. Não se muda de vida como ou com a lua. São processos lentos, por vezes dolorosos por vezes felizes, pesados ou leves, rápidos ou lentos, claros ou obscuros.

Estou precisamente num momento de mudança de vida. É-me difícil dizer quando começou esta; sob tortura apontaria para Dezembro de 1997, quando voltei para Moçambique (foi uma asneira monumental, a maior de todas as vidas e todas as asneiras que jamais fiz). E se tivesse de lhe apontar o fim, mencionaria muito provavelmente um determinado dia do mês de Abril de 2011, no Jardim da Estrela. Talvez tenha sido esse o primeiro dia do fim desta vida - ou, se quisermos ser optimistas, e eu sou - o primeiro dia da vida que agora está, finalmente, a despontar. Uma vida que começou com um erro e acabou com outro tem, pelo menos a vantagem da simetria (apresso-me  a esclarecer, não vá o diabo tecê-las, que o erro não foi esse dia de Abril; foi muito mais tarde).

O local onde as vidas se vivem é mais ou menos irrelevante; talvez seja por isso que gosto de me definir como viajante, tanto como marinheiro. Sou um viajante que viaja de barco (o meio de transporte e de vida favorito) e de autocarro, de avião e a pé, de bicicleta ou de placa tectónica. Esta que agora começa - talvez tenha sido hoje o primeiro dia, porque deixei o barco onde estava a dormir e voltei para o Reef Gardens, onde vou viver os nove dias que me separam do avião para San Francisco - vai iniciar-se, muito provavelmente (só acredito quando lá estiver, com a autorização de trabalho na mão) na Costa Rica.

Para lá, mais precisamente para Quepos, serão (provavelmente, nunca é de mais repeti-lo) enviados os caixotes que em Outubro de 2010 deixei em S. João do Estoril com livros, discos, bibelots, roupa e fotografias: e uma bicicleta, em Oeiras. Ou seja: tudo o que tenho das vidas todas que vivi.  Não é muito, antes pelo contrário. Mas eu acredito que a quantidade de coisas que acumulamos ao longo das nossas vidas é inversamente proporcional à intensidade com que as vivemos. As minhas foram tudo menos mornas.

Um especialista em dependências disse-me um dia que não há ex-alcoólicos, ou ex-heroinómanos. Há dependentes (hoje diz-se adictos, porque a língua por vezes gosta de se encanalhar, tal como a vida) que não bebem ou não se injectam. Provavelmente o mesmo aplica-se ao desenraizamento. Não há ex-desenraizados; só viajantes que decidiram parar.

Eu vou parar. Não sei por quanto tempo nem onde, mas sei que vou. Depois logo se vê. Se não estiver demasiado escuro, claro.

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