É preciso começar por dizer, em abono da verdade, que de Marlboro os cigarros têm muito pouco; o exterior, por assim dizer: saem de um maço que é encarnado e diz Marlboro, no papel perto do filtro diz outra vez Marlboro. Mas são tudo menos Marlboro.
Nos dias normais não compro nenhum; nos ligeiramente menos normais compro dois; nos outros compro quatro ou cinco. Devia ser obrigatório vender cigarros à unidade. Fuma-se menos e só quando se tem realmente necessidade de fumar; interage-se com uma camada interessante da população local (estou quase a tornar-me quase-amigo da senhora que me vende os únicos verdadeiros Marlboro, ou pelo menos os que mais deles se aproximam); e faz-se exercício, coisa não despicienda, cada vez que se quer fumar. (A senhora tem outra vantagem: é a única - pelo menos até à data - que me deixa tirar os cigarros do maço. Os outros dão-mos pegando-lhes pelo filtro. Claro é que eles não puseram os dedos em nenhum sítio menos conveniente desde a última vez que lavaram as mãos com água e sabão; que as bactérias não sobrevivem muito tempo fora do seu habitat; e que é preciso criar anticorpos. Apesar disso tudo gosto mais quando a senhora abre o maço e o estende para mim).
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Estou de regresso ao Artie e por conseguinte muito mais longe dos meus passeios na Cinta Costera. Mas hoje estava para os lados orientais da cidade e resolvi voltar a pé.
A certa altura vi dois polícias interpelar um casal jovem e pensei "lá vão estes gajos chatear aqueles desgarçados por causa de uma esfregazita" (acontece muitas vezes, a moralidade e as boas maneiras são defendidas activamente). A esfregazita afinal era um arraial de pancada que o gajo estava a dar à miúda; ela passou por mim pouco deplois com a face ensanguentada, cheia de golpes. O gajo arreaou-lhe a sério.
Lembrei-me da conferência do Edgar Morin que ouvi em Lisboa: "nous voyons avec notre cerveau" (no caso dele o erro de percepção tinha sido provocado por um acidente entre uma bicicleta e um automóvel, do qual ele estava pronto a jurar que a culpa tinha sido do automobilista. Quando se aproximou ouviu o ciclista dizer "peço imensa desculpa, fui eu o culpado"). Vemos com o nosso cérebro. E sentimos e pensamos e amamos e somos amados com o nosso cérebro. E lembramo-nos, sofremos e goazamos e vivemos e tocamos e somos tocados.
Pensamos que precisamos de corpos, mas na verdade são mentes que nos faltam.
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Há um termo em francês do qual gosto muito: bringuebalant. Em inglês diz-se refit in Panamá. Enfim, lá vai andando. Pouco a pouco as peças do puzzle aproximam-se umas das outras - estão muito longe de estar encaixadas, mas estão também muito longe do caos de há uma semana ou duas -. Começo a entrever o fim, o que já não é pouco; e me traz à mente uma outra palavra francesa: soulagement. Em português poder-se-ia traduzir por inconsciência. Enfim, em pessimimês.
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Ontem fui finalmente comer ao café Coca-Cola, uma espécie de monumento local, pelo menos nos meios digamos populares do Casco Antiguo (Marx chamar-lhes-ia lumpen, e na Índia seriam designados por davit ou coisa que o valha), e nos meios, igualmente apaixonantes, dos backpackers (mochileiros? Porque me soa tão mal? Provavelmente por falta de hábito).
A comida é boa, barata, o serviço não tão mau como me tinham dito. Mas globalmente o sítio fica a milhas de qualquer tasca portuguesa, de um boubou antilhês, de qualquer Lizarran em Palma de Maiorca. A Europa pode estar a morrer, mas ainda é, e será o centro do mundo durante muito tempo (os boubou têm tanto de francês como de antilhês).
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.