Por várias razões, dizem: as pessoas têm pernas e cabeça e podem abandonar-nos; as coisas podem partir-se, ser roubadas ou nós decidirmos dá-las a alguém que delas precise ou as mereça.
Uma vez estava apaixonado por uma senhora. Só agora o sei, retrospectivamente. De muitos amores e apegos só nos apercebemos depois. Veio ao restaurante onde eu jantava em Alcântara para me dizer que não queria mais nada comigo. Eu sabia, esperava, e fingi que não fiquei muito magoado. Mas fiquei. Tinha acabado de jantar. Deixei a bicicleta no sítio onde sempre a deixava quando ia àquele restaurante e fui com ela de carro. Foi no jardim à frente do MNAA que me deu a notícia. Fê-lo com sensibilidade e ternura e graça, porque era uma senhora. Ainda é, suponho. Nunca mais a vi.
Mas quando me levou de volta ao restaurante a minha bicicleta tinha desaparecido. Era uma Peugeot encarnada, linda e veloz.
A senhora levou-me a casa - eu vivia então num tugúrio de dezanove metros quadrados no Príncipe Real - ; deixou-me na esquina do quiosque do senhor Oliveira. Era Novembro, creio. Chovia e a noite estava fria e escura. Eu tinha a minha gabardine e um chapéu verde, em pelo de coelho, do qual gostava muito e que anos mais tarde esqueci num táxi em Alfama.
Consigo ver-me naquela noite triste: a chuva, a cabeça baixa, as mãos nos bolsos, perdido e sem a minha Peugeot encarnada.
De meu tenho pouco, quase nada: um móvel, meia dúzia de caixotes de livros e outros tantos caixotes com objectos que fui acumulando e trazendo de alguns dos sítios por onde passei. Tenho algumas pessoas a quem quero muito e, até ontem, uma bicicleta.
Ontem roubaram-me a Rolex Voadora.
Não é por acaso que gosto de quem ou do que gosto. Por isso os meus afectos tendem a durar e alguns não acabam nunca. O desapego aprende-se, claro. De Buddha a Jesus não há lider religioso que não lhe gabe as virtudes, a necessidade ou a sageza.
Apesar disso prefiro o apego. Doloroso e efémero que seja, longos e
solitários que sejam os caminhos pelos quais nos leva - prefiro o apego.
Não somos o que temos, mas somos o que perdemos.
Já não tenho a Rolex Voadora como já não tenho muita gente e muitas coisas na minha vida. Mas a minha vida é essas coisas, essas pessoas. Quer me tenham sido roubadas ou tenham partido de vontade própria; quer se tenham despedido de mim com graça e ternura ou sem uma palavra; quer me magoem ainda ou não sejam já mais do que a memória de uma noite triste.
Prefiro os apegos, o amor, o afecto, a ternura.
São prisões, eu sei. Mas que seria a liberdade se não pudesse escolher prisões?
São prisões, eu sei. Mas que seria a liberdade se não pudesse escolher prisões?
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.