Lord Gin
Ontem saí, afogar diabos e diluir tristezas. Cheguei a casa eram 3 da manhã. Hoje estou, como de costume, com o Menière aos gritos. Já não basta ter que ouvir o L. dizer-me que bebo muito, tenho agora também um polícia interno.
E a verdade é que não bebo muito, ou pelo menos não bebo demais: de vez em quando lá vou para a ginástica de balcão, mas está longe de ser frequente ou exagerado. E não chateio ninguém: bebo metodicamente e vou para casa dormir.
Em Lüderitz havia um piloto da barra chamado Jim. Era um viking enorme, parecia um arranha-céus. Tinha uma espessa cabeleira loira e uma barba meio arruivada. Era escocês, de Kintyre, e falava com o impenetrável sotaque daquelas bandas.
Quando chegávamos à bóia de espera o Jim entrava a bordo e nós mandávamos vir uma garrafa de whisky para a ponte. Sentava-se num dos armários e começava a beber. Quando chegava a meio da garrafa desatava a cantar o Mull of Kintyre, com uma voz bonita, de barítono - uma vez explicou-me o que é um Mull, mas ou me esqueci ou não percebi nada, o inglês dele era incompreensível mesmo quando sóbrio.
O trajecto entre a barra e o porto demorava quase uma hora. Quando chegávamos o Jim tinha acabado a garrafa, estava totalmente grosso e tínhamos que ser nós a fazer a manobra. Uma vez atracados, ele voltava-se para mim ou para o capitão e dizia: "agora que já acabou o trabalho, que tal se fôssemos beber um copo?"
Lüderitz era uma cidadezinha fascinante no sul da Namíbia: estava rodeada de deserto, mas a primeira coisa que se via à chegada era uma igreja gótica, coisa que não dava de todo com o resto. As pessoas gostavam muito do nosso navio porque dávamos muitas festas. O capitão tinha uma amante cujo marido gostava muito de nós, também, e nunca percebeu que uma das minha tarefas era entretê-lo enquanto o capitão e a mulher pecavam no camarote ao lado.
De resto o navio era querido por todos na África do Sul, excepto pelos colegas, invejosos: quando chegávamos a Cape Town todas as prostitutas flutuantes vinham esperar-nos ao cais e mudavam-se em peso para bordo do Altair. Na primeira saída ficámos muito tempo no mar, quase dois meses porque estávamos a pescar mal. Quando voltámos tínhamos as raparigas todas no cais a gritar "Alter, Alter" em coro, para raiva e frustração das outras tripulações, que achavam injusto. A maioria era muito feia, mas os marinheiros gostavam de as ter a bordo, e tratavam-nas bem.
Era um grupo grande de prostitutas que vivia nos navios, não tinham casa. Por vezes havia problemas: um dia houve uma zaragata entre duas delas e tive que ir acalmar a coisa. Uma estava furiosa, tinha na mão um facalhão que roubara da cozinha e não deixava ninguém aproximar-se. Fartei-me de falar com ela, a tentar pô-la numa posição que permitisse a alguém ir por trás e tirar-lhe a faca. Foi o cozinheiro, finalmente que o conseguiu. Era um homem porreiro, chamava-se M. e fazia o melhor bacalhau à Brás que jamais comi. Todos os dias vinha à rede comigo escolher um peixe para mim, que deixavámos depois no sal até ao dia seguinte. É um erro comer peixe no dia em que sai do mar, é muito melhor pô-lo no sal uma noite, enrijece as carnes e apura o gosto.
O Bacalhau à Brás do M. era conhecidíssimo em Cape Town. Cada vez que lá íamos tínhamos que convidar um dos diplomatas de Portugal. O homem arrefinfava no gargalo - ainda por cima acabávamos o almoço com uma queimada divina, tradição do navio - e eu tinha que o acompanhar para ele não cair ao mar, agarrava-lhe delicadamente num braço e ia até ao carro assim, diplomaticamente.
Cape Town foi uma grande escola para mim, em muitas coisas. Como toda a gente nós pescávamos com redes de malha inferior à permitida. O capitão tinha-me avisado que os inspectores de redes eram gajos porreiros, mas que detestavam que os tomassem por estúpidos. Quando vieram inspeccionar as nossas redes mostrei-lhes a rede legal ainda na embalagem de fábrica - nunca tinha sido usada. Eles fizeram um buraco no plástico, mediram a malha, apertaram-me a mão muito sérios e fizeram o certificado. Nem o olho piscaram.
Mas o país onde vi beber mais - e onde eu próprio mais bebi - foi na Rússia, em Nakhodka. Quando se pedia um vodka orange vinha um copo grande, de água, cheio de vodka e um cálicezinho pequeno de sumo de laranja. A vodka vendia-se aos gramas, por unidades de cem gramas. Um duplo eram duzentas gramas. Mas o pedido mais frequente era trezentas gramas. E era preciso estar sempre a beber, porque volta e meia alguém dizia "Nazdharovia" e tínhamos que beber o conteúdo do copo de uma vez só. O truque consistia, naturalmente, em ter o copo o mais vazio possível, e cada vez que ele era cheio dar uma grande golada para ficar a meio. Uma vez saí de um restaurante que ficava no primeiro andar e quando cheguei às escadas apercebi-me que nunca iria conseguir descer aquilo. Deitei-me no chão e fui a rebolar até lá abaixo. Depois levantei-me, ainda um pouco tonto, mas digno, e fui para o navio.
Noutra noite fiquei a bordo e dei uma festa no meu camarote. Essas festas eram uma tradição, mas a maior parte da malta chateava-se porque eu e o imediato tínhamos o hábito de recitar Fernando Pessoa. Eles gostavam mais dos Cantos de Maldoror, que o imediato detestava. Mas enfim, a verdade é que a malta ia aparecendo e apesar dos protestos havia sempre uma récitazinha de poesia. À medida que as garrafas se iam esvaziando eu ia deitando-as fora pela vigia, atirando-as com muita força para ver se se partiam. No dia seguinte quando desci o portaló esperava-me um guarda (cada navio tinha 3, um à proa, outro ao portaló e o último à popa) totalmente enraivecido: a vigia dava para o portaló, para o sítio exacto onde ele estava, e ia apanhando com cada uma das garrafas que foram despachadas via aérea. O navio tinha mudado de lado e eu pensava que as estava a atirar para o gelo.
Em Nakhodka tinha uma namorada chamada Vicky, que era linda como um dia de sol. Era do Konsomol e desaprovava vigorosamente os meus excessos vodkistas. O primeiro presente que lhe dei foi uma escova de dentes - a rapariga não lavava os dentes havia anos, estavam verdes como os dólares que tanta falta me fazem. Mas era bonita, e ainda mais bonita ficou com os dentes lavadinhos.
Se houvesse um pouco de justiça no mundo o fígado seria um músculo, e fortalecer-se-ia cada vez que se bebesse um copo. Mas não é, nesse aspecto a evolução tomou o caminho errado.
Um nome giro para um bar seria "Lord Gin", não?
E a verdade é que não bebo muito, ou pelo menos não bebo demais: de vez em quando lá vou para a ginástica de balcão, mas está longe de ser frequente ou exagerado. E não chateio ninguém: bebo metodicamente e vou para casa dormir.
Em Lüderitz havia um piloto da barra chamado Jim. Era um viking enorme, parecia um arranha-céus. Tinha uma espessa cabeleira loira e uma barba meio arruivada. Era escocês, de Kintyre, e falava com o impenetrável sotaque daquelas bandas.
Quando chegávamos à bóia de espera o Jim entrava a bordo e nós mandávamos vir uma garrafa de whisky para a ponte. Sentava-se num dos armários e começava a beber. Quando chegava a meio da garrafa desatava a cantar o Mull of Kintyre, com uma voz bonita, de barítono - uma vez explicou-me o que é um Mull, mas ou me esqueci ou não percebi nada, o inglês dele era incompreensível mesmo quando sóbrio.
O trajecto entre a barra e o porto demorava quase uma hora. Quando chegávamos o Jim tinha acabado a garrafa, estava totalmente grosso e tínhamos que ser nós a fazer a manobra. Uma vez atracados, ele voltava-se para mim ou para o capitão e dizia: "agora que já acabou o trabalho, que tal se fôssemos beber um copo?"
Lüderitz era uma cidadezinha fascinante no sul da Namíbia: estava rodeada de deserto, mas a primeira coisa que se via à chegada era uma igreja gótica, coisa que não dava de todo com o resto. As pessoas gostavam muito do nosso navio porque dávamos muitas festas. O capitão tinha uma amante cujo marido gostava muito de nós, também, e nunca percebeu que uma das minha tarefas era entretê-lo enquanto o capitão e a mulher pecavam no camarote ao lado.
De resto o navio era querido por todos na África do Sul, excepto pelos colegas, invejosos: quando chegávamos a Cape Town todas as prostitutas flutuantes vinham esperar-nos ao cais e mudavam-se em peso para bordo do Altair. Na primeira saída ficámos muito tempo no mar, quase dois meses porque estávamos a pescar mal. Quando voltámos tínhamos as raparigas todas no cais a gritar "Alter, Alter" em coro, para raiva e frustração das outras tripulações, que achavam injusto. A maioria era muito feia, mas os marinheiros gostavam de as ter a bordo, e tratavam-nas bem.
Era um grupo grande de prostitutas que vivia nos navios, não tinham casa. Por vezes havia problemas: um dia houve uma zaragata entre duas delas e tive que ir acalmar a coisa. Uma estava furiosa, tinha na mão um facalhão que roubara da cozinha e não deixava ninguém aproximar-se. Fartei-me de falar com ela, a tentar pô-la numa posição que permitisse a alguém ir por trás e tirar-lhe a faca. Foi o cozinheiro, finalmente que o conseguiu. Era um homem porreiro, chamava-se M. e fazia o melhor bacalhau à Brás que jamais comi. Todos os dias vinha à rede comigo escolher um peixe para mim, que deixavámos depois no sal até ao dia seguinte. É um erro comer peixe no dia em que sai do mar, é muito melhor pô-lo no sal uma noite, enrijece as carnes e apura o gosto.
O Bacalhau à Brás do M. era conhecidíssimo em Cape Town. Cada vez que lá íamos tínhamos que convidar um dos diplomatas de Portugal. O homem arrefinfava no gargalo - ainda por cima acabávamos o almoço com uma queimada divina, tradição do navio - e eu tinha que o acompanhar para ele não cair ao mar, agarrava-lhe delicadamente num braço e ia até ao carro assim, diplomaticamente.
Cape Town foi uma grande escola para mim, em muitas coisas. Como toda a gente nós pescávamos com redes de malha inferior à permitida. O capitão tinha-me avisado que os inspectores de redes eram gajos porreiros, mas que detestavam que os tomassem por estúpidos. Quando vieram inspeccionar as nossas redes mostrei-lhes a rede legal ainda na embalagem de fábrica - nunca tinha sido usada. Eles fizeram um buraco no plástico, mediram a malha, apertaram-me a mão muito sérios e fizeram o certificado. Nem o olho piscaram.
Mas o país onde vi beber mais - e onde eu próprio mais bebi - foi na Rússia, em Nakhodka. Quando se pedia um vodka orange vinha um copo grande, de água, cheio de vodka e um cálicezinho pequeno de sumo de laranja. A vodka vendia-se aos gramas, por unidades de cem gramas. Um duplo eram duzentas gramas. Mas o pedido mais frequente era trezentas gramas. E era preciso estar sempre a beber, porque volta e meia alguém dizia "Nazdharovia" e tínhamos que beber o conteúdo do copo de uma vez só. O truque consistia, naturalmente, em ter o copo o mais vazio possível, e cada vez que ele era cheio dar uma grande golada para ficar a meio. Uma vez saí de um restaurante que ficava no primeiro andar e quando cheguei às escadas apercebi-me que nunca iria conseguir descer aquilo. Deitei-me no chão e fui a rebolar até lá abaixo. Depois levantei-me, ainda um pouco tonto, mas digno, e fui para o navio.
Noutra noite fiquei a bordo e dei uma festa no meu camarote. Essas festas eram uma tradição, mas a maior parte da malta chateava-se porque eu e o imediato tínhamos o hábito de recitar Fernando Pessoa. Eles gostavam mais dos Cantos de Maldoror, que o imediato detestava. Mas enfim, a verdade é que a malta ia aparecendo e apesar dos protestos havia sempre uma récitazinha de poesia. À medida que as garrafas se iam esvaziando eu ia deitando-as fora pela vigia, atirando-as com muita força para ver se se partiam. No dia seguinte quando desci o portaló esperava-me um guarda (cada navio tinha 3, um à proa, outro ao portaló e o último à popa) totalmente enraivecido: a vigia dava para o portaló, para o sítio exacto onde ele estava, e ia apanhando com cada uma das garrafas que foram despachadas via aérea. O navio tinha mudado de lado e eu pensava que as estava a atirar para o gelo.
Em Nakhodka tinha uma namorada chamada Vicky, que era linda como um dia de sol. Era do Konsomol e desaprovava vigorosamente os meus excessos vodkistas. O primeiro presente que lhe dei foi uma escova de dentes - a rapariga não lavava os dentes havia anos, estavam verdes como os dólares que tanta falta me fazem. Mas era bonita, e ainda mais bonita ficou com os dentes lavadinhos.
Se houvesse um pouco de justiça no mundo o fígado seria um músculo, e fortalecer-se-ia cada vez que se bebesse um copo. Mas não é, nesse aspecto a evolução tomou o caminho errado.
Um nome giro para um bar seria "Lord Gin", não?
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.