29.12.14

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 29-12-2014

A maré sobe, a maré baixa.

Felizmente não me posso queixar: pelo menos tenho trabalho.

Não me apetece contar histórias tristes, conto uma bonita. Mesmo não sendo a primeira vez. Mas enfim, o Don Vivo, coitado, faz hoje onze anos. Pode permitir-se algumas repetições.

Ou em 2004 ou em 2006 saí de Cascais para as Canárias num Centurion 43, um barco magnífico. O armador perguntou-me quanto queria ganhar, eu disse-lhe. Ele respondeu "Isso é um salário de skipper, e eu preciso de um tripulante. O skipper sou eu. Pago-te xis". Eu aceitei, claro. Os meus problemas com dinheiro não datam de hoje, e há muito que tenho os de ego resolvidos.

Ainda não tínhamos chegado a Sagres e caíu-nos um Sudoeste em cima. A depressão era cavada, empatou por ali e o resultado foi um arraial de porrada que durou quatro ou cinco dias. Por arraial de porrada quero dizer arraial de porrada: trinta trinta e cinco nós pela proa, um barco demasiado carregado, dois gajos a bordo.

J., o armador nunca tinha apanhado uma coisa daquelas. Eu já, algumas. Discutimos algumas vezes sobre o que fazer. Ao fim de dois dias ele disse-me "contratei-te como marinheiro, mas tu sabes muito mais disto do que eu. A partir de hoje tu és o skipper e eu pago-te como tal desde Cascais".


Alguns anos mais tarde aterrei em St. Martin sem um chavo. Telefonei-lhe (ele vive aqui) e perguntei-lhe se me podia ajudar a arranjar um trabalho. Convidou-me para almoçar, expliquei-lhe que estava sem um tostão, e ele disse-me"Tenho um trabalho para ti no C., em Antigua".

Comprou um bilhete de avião e nessa tarde eu estava em Antigua, com três mil e quinhentos dólares no bolso. "Fazes as reparações e ficas com o que sobrar". Ando há anos a explicar-lhe que me sobrou dinheiro demais para o trabalho que fiz e que quero reembolsá-lo. Não responde, sequer.


Hoje fui trabalhar para o C. de novo. Foi "cicloné" (um neologismo, mesmo em francês que me atrai, vá lá saber-se porquê). A coisa foi muito mais complicada do que ambos pensávamos inicialmente.

Expliquei-lhe que faria o trabalho por metade do preço, para compensar. Nem me respondeu, como de costume. E pagou-me, como é hábito nos americanos, ao fim do dia de trabalho.

Não gosto nem desgosto de americanos. Gosto de pessoas. J. é uma das pessoas, poucas, que respeito neste meio.

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Onze anos de Don Vivo. Onze anos de vida.

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De maneira é isto: regressei à Little Crew House, estou no Lagoonies a ouvir rock e blues do melhor, fui jantar à colombiana porque é mais barato e paguei três dólares por um duche, porque saí do C. imundo e não me apetecia ir aos duches da Crew House. Amanhã às oito da manhã estarei no C. O meu cinto apertou mais um furo. Daqui por duas ou três semanas poderei trabalhar de novo na Dream Yachts. Questão de papéis e contas bancárias: merdas que os burocratas inventam para justificar o seu salário.

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Nada que um rum punch ou dois não resolvam. Nada que estar vivo não resolva. Nada que um barco, sol e vento e boa música não resolvam.

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