Estou cansado, exausto; e não tenho computador, ainda. Quando preciso de um vou à biblioteca municipal de Galveston, que tem quarenta para uso público - e gratuito -. Mas é por fatias de hora e meia, e uma parte desse tempo é passada a trabalhar, outra a percorrer o livro das caras, outra a ler e responder a mails, outra a divagar... Perdi o meu telefone - enfim, perdi-o e perdi-me - na noite da prisão de Sócrates. Agora ando com um minúsculo, que me obriga a escrever três vezes cada palavra.
Fica pouco tempo para o blogue, coitado.
Verdade seja dita: pouco há a contar. O trabalho absorve-me os dias, o sono as noites. Entre os dois, pequeno-almoço e almoço rápidos e jantar em terra, quase sempre na Stuttgarten Tavern. Ou no Stork Club, um restaurante local, agradável, sem mais. Ou no Fuddruckers, de que já aqui falei e onde devia ir mais vezes.
Agora descobri outro canto, e encanto; o Mod Coffee House. Como é uma Coffee House a água é um bocadinho mais escura do que nos outros sítios e tem um ligeiro acréscimo de sabor. Não muito, claro, que aquilo está longe de ser café. Mas enfim, o local é agradável e tem uma atmosfera de café: pessoas a conversar, trabalhar, estudar, escrever, ler, boa música e - infelizmente, que raramente lhes resisto - óptimos biscoitos.
Como sempre um, por vezes dois para punir o meu corpo das malandrices que ele me faz: o cansaço, a incapacidade de gerir correctamente o açúcar no sangue, a miopia, o tinitus e essas coisas todas.
O frio voltou, a indecisão também, a solidão continua. Tudo isto mudará, mais tarde ou mais cedo. Com excepção do tempo, que gostaria mudasse já, o resto pode esperar.
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Tudo tem um fim, menos as viagens: as que hoje faço são a continuação da que me levou a dar uma volta ao mundo em 1976? Provavelmente.
E tudo tem um princípio; menos a dor, claro. É uma aluvião, a dor. Sedimenta, consolida-se e ao fim de uma vida vamos a ver e foi ela que fez o leito pelo qual o rio correu. Já a felicidade não: vai com as águas, não pousa, nunca fica muito tempo no mesmo sítio.
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Sei pouco da história de Galveston. Foi criada no início do século XIX no que era então a República do Texas. Está na trilha dos ciclones. Em 1900 um deles matou oito mil pessoas. E do presente tão-pouco sei grande coisa. Cidade turística, portuária, hospitalar e balneária, agora fora de época.
Tem uma universidade - cujos alunos são de resto uma boa parte da clientela do café Mod -. Não sei se vota à direita se à esquerda. É uma ilha, maior do que parece: no outro dia tentei dar-lhe a volta de bicicleta e não cheguei nem a um terço.
"A época da solha está quase a acabar?" pergunta um jornalista no jornal local. "Tudo leva a crer que não", responde: "o organismo que gere o parque nacional (uma grande parte da ilha está num parque, ou coisa que o valha) prolongou o limite da captura de duas solhas por pessoa até dia quatorze". É preciso dizer que a pesca recreativa é uma actividade vital para a população. A marina está sempre cheia de pescadores e de solhas acabadas de pescar; há lojas de isco e artigos de pesca em tudo quanto é canto; o jornal menciona frequentemente o tema.
Recentemente perguntei à rapariga do Stork qual a atracção turística de Galveston, para além, claro está, da praia. "Pode andar-se com bebidas na rua", responde, ao fim de bastante tempo de reflexão.
A cidade é bonita. E monótona. John, um dos donos do Stuttgarten diz-me que isto não são os Estados Unidos. "As pessoas deixam o cérebro do lado de lá da ponte quando a atravessam". É da Geórgia, mas viveu "em todo o lado", Trabalhou num navio de cruzeiros. Conhece Lisboa, o Estoril, Cascais. Está aqui apenas para ir à escola náutica, quer progredir na carreira e "chegar a comandante".
É o tipo mais simpático que aqui encontrei, juntamente com Ben, o mecânico que ontem veio a bordo. "A ética de trabalho aqui é..." John faz uma careta, desfaz, refaz e conclui "horrível". Vai-se embora assim que acabar o curso.
E eu logo que o trabalho acabe. Já não faltava muito, quase nada, mas agora apareceu outra porcaria para resolver. Mais um dia ou dois.
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O bar 21 tem Laphroaig a sete dólares e a barmaid mais bonita de Galveston, do Texas e do Universo, para cortar caminho. A rapariga tem classe, mais classe do que idade. Nasceu com ela. Já vem de trás. Aquilo é a refinação de muitos ciclos de DNA.
O bar é bonito, a música boa e calma (excepto aos fins-de-semana) e a barmaid - perdoem-me a insistência - linda como um dia de sol nas Baleares. Mas as televisões - duas! - estragam tudo. Somos perseguidos pela merda da televisão. Não se pode dar um passo sem que ela, ou elas se espequem à nossa frente como uma namorada mal escolhida.
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Ontem foi o primeiro dia de folga desde que cheguei. Refiro-me a uma folga explícita, formal, assumida e voluntária. A do sábado a seguir à prisão de Sócrates não responde a nenhum desses critérios. É bom, mas pouco. Uma tarde não chega. Precisava pelo menos de mais um dia, mas não vai ser possível.
Por isso faço durar o Laphroaig, enquanto oiço - impossível não ouvir - uma conversa entre dois clientes. Um está à minha direita e só faz pergunats e o outro, acompanhado pela namorada, à esquerda e só responde. Este vai ficar desempregado. Tinha um bar, mas vai ter de o fechar não percebi bem porquê. Mas entretanto parece que se alistou na Marinha. É médico ou enfermeiro, tal como a mulher, de resto. Tento não ouvir muito, vou escrevendo e olhando para a televisão ou para a barmaid, quando ela não pode ver quer a miro como se a criação fosse o museu do Louvre e ela a Gioconda.
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Aos fins-de-semana Galveston humaniza-se. Enche-se de gente ("de Houston, vêm aqui passar o fim-de-semana" diz-me a tal rapariga do Stork Club) e os carros ganham condutores humanos: buzinam, aceleram... Deixam de ser conduzidos por robots.
São os únicos dias desagráveis. Os outros? Meramente chatos.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.