Hoje a prelecção de Francesco começou pelos preços das coisas. No lado francês são muito mais baratas, coisa que Francesco não compreende, não aceita e contra a qual se revolta. E me revolta.
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Agora vai no vegetarianismo; veganismo; o tio dele e respectivo pai; um gajo qualquer que tem cancro e o tratou com comidas naturais devido ao conselho de um "quase guru" (sic) indiano.
Coisas que não aparecem na televisão porque é preciso comprar gorduras, etc. e enriquecer as empresas que querem ganhar dinheiro matando-nos, etc.
Digo que sim a tudo. Posso não ser um ouvinte atento mas sou fácil. Não contesto, não respondo, Não por falta de educação ou de interesse, muito longe disso. Mas porque acho pena interromper um fluxo de palavras tão bonito, tão largo, tão tranquilo, no fundo.
(Isto dito, Francesco come carne e aceita o vinho que lhe ofereço. Mas sabe que "quando morrer não culpará ninguém se não ele próprio").
Os temas já variaram bastante, entretanto. Agora está a falar da mãe e da cozinha dela. A garrafa de Frontera que comecei no início do jantar - isto é, incluíndo o cozinhar - e da qual lhe ofereci dois copos está quase a acabar.
Transpiro abundantemente, em partes iguais devido ao picante, ao silêncio do Francesco (calou-se para comer e o silêncio é abafador) e ao calor na cozinha da Little Crew House.
Talvez não seja em partes iguais. Francesco tira a camisa, o que num gajo magro quase esquelético é sinal de calor a sério.
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Vou para a varanda fumar o cigarro que troquei por um dos copos de vinho. A varanda tem muitas vantagens: vento, Sirius, posso estar descalço sem pensar que estou a andar em cima de uma porcaria qualquer (o chão é de madeira, à moda caribenha, tábuas afastadas para escoar a água da chuva). E tem Ph., o homem que ontem estava aflito porque só tinha cem dólares, quantia com a qual me sinto quase rico.
"Estoy borracho. Desculpame" (falamos espanhol. Ele vive em Mallorca). "Por amor de Deus, Ph." não lhe respndo. "Ontem foi a minha vez".
A varanda está voltada a Sul. O vento entra pela esquerda. Sirius está a Sueste. É o único astro que se vê. Ph. foi para o quarto, Francesco idem. Volto para a cozinha. Ainda tenho um copo de vinho, e não consigo escrever bem (nem mal, de resto, como é mais frequente) na varanda, porque não há mesas. Há sofás confortáveis onde me posso sentar e esticar as pernas.
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Penso muitas vezes na reforma. Tenho duas alternativas: um cancro benfazejo ou o mar.
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Fui trabalhar para o C. e por conseguinte consegui comprar comida. Fiz uma espécie de caril com o peixe que me sobrava. Não consigo imaginar-me a pedir crédito ao chinês (ou à chinesa. Ele não fala uma palavra de inglês). À Olivia do Lagoonies é mais fácil.
Não é por racismo, claro - quando muito seria por socialismo - mas não deixo de pensar que é irónico: se a senhora soubesse de certeza me pediria para ser o mais racista possível.
(Francesco acha que são "ladrões autorizados" e que eu devia andar quinze minutos, depois do trabalho, para ir ao supermercado grande do lado francês, poupar dinheiro nas compras e ganhar em qualidade. Eu não. Estou-lhes grato por serem do outro lado da rua, por terem leite e gengibre e frango, peixe ou carne picada congelados, ovos, bacon, sal e azeite. E vinho. Nunca lá comprei utras coisas, que assim de repente me lembre).
E sabonetes. Hoje comprei um, enquanto não chegam os sabonetes / shampoos da Grão da Terra. É um luxo, eu sei, importar sabonetes artesanais do Alentejo.
Como dizia M., ontem "sê gentil contigo". Sou.
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Não tenho medido o nível de coiso no sangue. A julgar pelo tinitus deve andar na estratosfera. Bom proveito. Pelo menos adoça-a.
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O Lagoonies fechou, o vinho acabou, o tinitus urra, a loiça pede-me insistentemente que a lave, para ir dormir.
Daqui a pouco estarei a dormir. Há pessoas que não gostam de viver ao dia a dia, Acham desestabilizante, ou coisa que o valha. Eu gosto; mas não é ao dia a dia. É ao sono a sono.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.