Não escrevo com a caneta há uma eternidade. Gastei uma fortuna na tinta, mais vale usá-la. Fácil: posso escrever sobre as mulheres da mesa ao lado, a generosa porção de rum que R. me serviu - relembro que só vim ao Lagoonies porque não tenho net a bordo, argumento tão potente como falacioso e que vou gastar com estas palavras pelo menos vinte vezes o que valem -; sobre o tempo, muito ventoso porque estamos em Dezembro e é tempo das brisas natalícias que tornam a temperatura muito agradável.
Temas importantes.
Um delas tem a cara feia mas é atraente. Uma espécie de milagre: ser feio e bonito ao mesmo tempo.
O que faz bonita uma cara feia? O sorriso? O olhar? Ignoro. Tento não olhar demasiado para a senhora na minha tentativa de elucidar esta questão, mas é difícil. Resisto menos facilmente a um mistério do que a uma tentação.
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Está um badanal do caraças. Há dois ou três dias que não pára. Vinte vinte e cinco nós, diz o anemómetro; vinte e cinco trinta, digo eu.
Já agora gostava de ter a certeza. Fiz a viagem toda convencido de que o anemómetro estava errado.
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O dia foi frustrante. Todos nós sabemos como é: começa-se a reparar uma coisa - depois da terceira visita a um dos fornecedores, porque a peça que nos deu estava uma merda - e descobre-se que nos falta uma ferramenta e que outra coisa se partiu e que o trabalho em vez de levar uma hora como se tinha previsto vai levar mais um meio dia no mínimo.
[Adenda: estive hoje o dia todo quase de volta daquilo e tive de chamar um carpinteiro. "Um marinheiro é um gajo que sabe fazer tudo vírgula mal"]
Felizmente o Lagoonies fornece o anti-frustrante quase perfeito (quase porque custa cinco dólares. Se fosse mais barato seria perfeito).
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O S.M. mexe-se como se quisesse ir para o mar. E eu com ele. Quero.
No Mediterrâneo em Janeiro vou apanhar muito mais. Se não fosse pela proa...
Vai ser, claro. Em Setembro apanhei um arraial entre a Córsega e Port St. Louis pela popa e isto deve esgotar o capital de sorte para os próximos dez anos.
Que se lixe. Não é a primeira nem será a última vez. Um arraial de porrada no mar faz bem: põe-nos imediatamente no nosso lugar.
E aos Costas, Centenos e outros palhaços que nos governam. Gostaria de os ter ali a discutir as vantagens de renacionalizar a TAP ou salvar o Banif com o dinheiro dos trouxas que pagam impostos em Portugal (parece que havia outra solução. Não sei). Força nove na proa e muito gostaria de ver o jeito para político do Toinas.
Eu não pago impostos, nem em Portugal nem em lado nenhum. Mal ganho para comer e beber, quanto mais alimentar cáfilas. E não pago renda de casa. Faria se pagasse.
De qualquer forma tenho de mudar de óculos e ir ao médico. Só isso paga os impostos de cinco anos no mínimo.
Que asco, meu Deus, que asco. Se alguém me tirasse o chip Portugal e mo substituísse por outro azul ou mar ou nenhures eu juro que desta vez diria sim.
Antes apátrida que sujeito daquela corja.
Amártrida. Que palavra tão bonita! Tem mar, amar, ausência de pátria e outras putrefacções.
Não é que não goste de Portugal. Adoro aquele país. Só preferiria não lhe ter nenhuma ligação afectiva e olhar para ele como para o Congo, o Panamá ou St. Vincent and the Grenadines.
Poder comer alheiras ou morcelas de arroz ou farinheira, cozido à portuguesa, peixe no forno, caldo verde, sopa de tomate, carne de alguidar ou fosse o que fosse sem memórias associadas. Que bom seria!
De resto pouco ou nada há a dizer. Pessoas simpáticas (desde que não trabalhem num guichet de uma repartição), bom clima, boas comida e bebida a preços mais do que suportáveis mesmo por um pobre marinheiro longe de casa.
Só é pena este apego à miséria que nos faz eleger atrasados mentais e apoiar-lhes as políticas.
Atrasados mentais talvez não sejam. Governam-se bem. Mas bolas, isso não é um problema. Bastaria que em troca fizessem alguma coisa pelo país. Não fazem e a culpa não é deles, é de quem os aguenta e vota neles.
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Ardeu em S. Paulo o Museu da Língua Portuguesa. É uma das coisas que lamento não ter visto quando lá estive. Parece que era realmente interessante e bonito.
João Soares, o nosso inefável ministro da Cultura quer ajudar o Brasil. Não sei exactamente como, nem porquê.
O PIB per capita do Brasil é aproximadamente metade do português. É difícil argumentar que o Brasil é um país pobre. Portanto a ou as causas da pobreza devem procurar-se noutro lado.
Os brasileiros são pobres porque querem. Ou pelo menos porque não querem não o ser. Talvez seja uma mistura: uma parte quer ser pobre e a outra concorda.
Pode dizer-se o mesmo de Portugal, claro. Podíamos ser muito mais ricos. Não somos porque preferimos ser pobres. Ser rico dá muito trabalho e implica correr riscos.
(Se alguém me perguntar porque é não sou rico apesar do que trabalho e dos riscos que corro mando-o apanhar no cu, fica já avisado.)
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Afinal o meu Natal não vai ser solitário. A tripulante resolveu ficar a bordo em vez de ir jantar a casa de uma argentina que não me quer em casa porque não me conhece.
Fiquei comovido e não lhe disse que de qualquer forma já tinha decidido não ir.
Charros, música de merda e conversa ainda pior: nada que uma garrafa de Mount Gay e os meus discos não substituam com vantagem.
A tripulante não fuma e suporta bem o meu silêncio. Vou fazer umas lulas e dormir cedo. O Pai Natal pode ir bater a outras portas. Verdade seja dita que para aí desde Maio ou Junho me tem visitado quase todos os dias.
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De modo é isto: tenho fome mas tenho comida a bordo, nao tenho massa mas tenho trabalho, não tenho mulher mas tenho paz.
Há muito tempo que não via um Natal assim.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.