6.6.16

"Na boca um cadáver"

Andam crocodilos pelos esgotos. Verdade, escaparam-se do jardim zoológico com as cheias e andam pelos esgotos e pelas ruas e também pelas cabeças de quem os viu. Mas não são apenas crocodilos. São crocodilos mágicos, resplandecentes, incendeiam as ruas e os futuros das futuras vítimas. É preciso estar atento: um futuro queimado por um desses crocodilos nunca mais volta.

Os crocodilos atacam depressa, mal se vêem, arrastam as vítimas para debaixo de água e deixam-nas lá a apodrecer. Por isso gostam tanto de futuros. Incendeiam-nos para que durem mais tempo. No Burundi as discotecas eram perto da praia e tinham avisos: "Atenção aos crocodilos", diziam. Mas mesmo assim todos os anos havia uma ou duas pessoas que se deixavam levar. Enfim, deixar não é bem o verbo. Uma vez na boca de um bicho daqueles as alternativas são poucas.

Por isso presto muita atenção aos crocodilos que se escaparam do Zoo de Vincennes. Foi lá que tudo começou, em 68. Talvez recomece agora com crocodilos fugitivos em vez de estudantes universitários. Infelizmente já não haveria Raymond Aron para escrever sobre a revolta dos bichos, ele que tão bem escreveu sobre a dos outros. Nem Zappa. Nem Debord. Morreram todos. Nem todos: o Vaneigem ainda está vivo. "Traité de savoir vivre à l'usage des jeunes crocodiles". Hoje venderia pouco. "Désormais, les analystes sont dans la rue. La lucidité n'est pas la seule arme. Leur pensée ne risque plus de s'emprisonner ni dans la fausse réalité des dieux, ni dans la fausse réalité des technocrates !" Hoje quem manda são os moralistas, meu caro Raoul; e não têm sequer a cultura dos outros, que eram moralistas mas pelo menos sabiam ler e escrever. Os velhos retiraram-se e deixaram a rua aos crocodilos. "Ceux qui parlent de révolution et de lutte de classes sans se référer explicitement à la vie quotidienne, sans comprendre ce qu'il y a de subversif dans l'amour et de positif dans le refus des contraintes, ceux-là ont dans la bouche un cadavre.

Ou um crocodilo.

"Le WELFARE STATE nous impose aujourd’hui, sous la forme de techniques de confort (mixer, conserves, Sarcelles et Mozart pour tous), les éléments d’une SURVIE au maintien de laquelle le plus grand nombre des hommes n’a cessé et ne cesse de consacrer toute son énergie, s’interdisant du même coup de VIVRE."


(As citações vêm de Traité de savoir vivre à l'usage des nouvelles générations e de Banalités de Base, livros que frequentei fugaz e levemente vai para alguns anos).

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