13.12.16

Reedição - Tiro ao alvo

Uma reedição que vem mesmo a calhar:

Tive uma adolescência difícil. Tentei apaziguá-la com whisky e Nietzsche, mas os resultados não foram satisfatórios. Hoje tenho sessenta anos e ainda lhe sinto os efeitos. A verdade é que me tornei um homem solitário, detestado pela maioria das pessoas e apenas levemente suportado por duas ou três - a quem por isso chamo amigos íntimos. Não o são, nem uma coisa nem outra: não tenho nem amigos nem íntimo. Enfim, o meu íntimo acaba nos meus pulmões. Daí para dentro, ou para baixo, ou para onde quiserem não há nada. Talvez o estômago. Não sei.

Também não sei se gosto da vida que levo: nunca pensei nisso e de qualquer forma não dialogo comigo mesmo. Não sendo esquizofrénico não tenho interlocutor. Continuo a beber whisky, claro; mas deixei de ler Nietzsche. O moralismo cansa-me, cada vez mais e mais depressa. Acho que deve haver, algures, uma perspicácia neutra de um ponto de vista moral. Neutra, transparente (é uma metonímia para inexistente. Que se fodam as metonímias e a moral). Claro que me podem dizer que continuo a ler Beckett e que se aquilo não é moral o que o é? Talvez, mas pelo menos Beckett é cómico. E Cioran; e esses gajos todos: Debord, Vaneigem ("en se banalisant, la vie quotidienne a conquis peu à peu le centre de nos préoccupations (1). - Aucune illusion, ni sacrée ni désacralisée (2), - ni collective ni individuelle, ne peut dissimuler plus longtemps la pauvreté des gestes quotidiens (3). - L'enrichissement de la vie exige, sans faux-fuyants, l'analyse de la nouvelle pauvreté et le perfectionnement des armes anciennes du refus (4)"). "As armas antigas da recusa". Não é cómico, isto? As novas não servem? De qualquer forma cada vez leio menos, uma sorte.

Aos quinze anos o meu Pai deu-me um modelo de porta-aviões para construir. Achava fácil, e como eu gostava de aviões pensou que era o indicado. Deve ter sido a única coisa em que acertou na vida - pelo menos no que me diz respeito -. Desde então nunca mais parei de construir modelos - de navios, de aviões, de soldados, de tanques, de carros, de tudo de que tenha sido feito um modelo -. E comprar, também: tenho uma colecção que deixa a do Pavilhão Chinês a milhas. Todos pintados pormenorizadamente - graças a Deus nunca tive que perder tempo a foder mulheres nem a educar as crianças que daí resultam, inevitavelmente -. (O que não quer dizer que seja virgem. Não sou. Até há pouco tempo ia a uma puta do Intendente, sempre a mesma, duas vezes por mês. Mas ela reformou-se e não quer foder mais. Tanto se me dá. De qualquer forma estava mais gasta do que um pergaminho do Mar Morto).

Também perdi a vontade de construir modelos. Agora o meu passatempo é destruí-los: comprei uma carabina de chumbos e todos os dias atiro a dez soldados; uma vez por semana acrescento dois aviões e um navio. Calculei que a este ritmo tenho para dez anos de tiro ao alvo. Depois, não sei. Talvez compre uma Walter PPK. É uma arma bonita, a PPK; e a dois centímetros é impossível falhar o pior modelo que já construí.

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