3.2.17

Diário de Bordos - Genève, Suíça, 03-02-2017

É talvez assim - mas não tenho a certeza - que os dias deviam passar: fluindo. Sem correr nem andar, sem curvas nem contracurvas, sem saltos nem sobressaltos, sem quedas nem levantar-se.

E depois, claro, desaguar num jantar de amigos, terminar com um Irish Coffee feitos como deve ser (não há erro de concordância) e Carlo Gesualdo antes do sono.

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Esta cidade não muda, seja Deus louvado. Nenhuma muda, mesmo quando pensamos que sim. Na Ferblanterie entra a malta que entrava há trinta anos no Marchand, trinta anos mais nova (isto é, da mesma idade); no Bio sento-me ao lado de duas miúdas de vinte e poucos anos - a idade que eu tinha quando frequentava Carouge -; falam de... de... de alojamento, claro. Na Rue Ancienne passo por uma montra que tem uma grande cópia de um artigo de jornal cujo título é A morte do pequeno comércio de Carouge. São cinco e vinte da tarde. Chego à loja do café (recente, isto é, não existia há vinte anos). Está fechada. Fecha às cinco e um quarto, todos os dias.

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Tenho um passe mensal para os TPG e um número telefónico suíço. Já só me falta a bicicleta para ser residente.

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Cada vez acredito menos nessa história do regresso aos sítios onde fomos felizes. E àqueles onde fomos infelizes? E se neles tivermos sido felizes, infelizes, felizes, infelizes, felizes (repetir ad eternum)?  Pouco me interessa. Dos sítios por onde passámos fica o que somos hoje, não o que fomos quando neles estivemos.

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Amanhã jantar em casa de Th. e A. A. foi a primeira pessoa - tanto quanto me lembro - que me disse que eu devia dedicar-me a escrever. Foi também ela que me fez conhecer o Château Haut-Marbuzet, o melhor vinho da galáxia e arredores. Ignoro se há uma relação entre as duas coisas. Acho que não.

Talvez haja, muito lá no fundo, quem sabe?...

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Para quem tenha muitas perguntas sem resposta, como a de acima: Carlo Gesualdo, Tenebrae; Hildegarde von Bingen ("We cannot live in a world that is not our own, in a world that is interpreted for us by others. An interpreted world is not a home. Part of the terror is to take back our own listening, to use our own voice, to see our own light.") Canticles of Ecstasy.

"Dare to declare who you are. It is not far from the shores of silence to the boundaries of speech. The path is not long, but the way is deep. You must not only walk there, you must be prepared to leap."

(Hildegarde).

(Não sei se deva considerar isto o fim de um dia se o princípio do outro).

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Pequena nota importante: o autocarro estava quatro minutos atrasado.

Segunda nota importante: como se pode ser estrangeiro num mundo em que se conhece tanta gente tão bonita?

Terceira nota importante: ser estrangeiro em todo o lado é não o ser em lado nenhum. Quem é de algum lugar é de todos os lugares.

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