16.3.17

Diário de Bordos - Lisboa, 15-03-2017

Hoje fui jantar a casa de uma senhora por quem tenho uma admiração infinita. Enfim, uma mistura de admiração e gratidão, irresistível. Infinitas ambas mai-la mistura das duas. Não pus o dedo no nariz e só o pus na boca muito depressa, tinha um bocado de carne entre dentes e em vez de educadamente me levantar e perguntar onde é a casa de banho e mal chegado ao corredor enfiar o indicador e escarafunchar os dentes todos fui directa e disfarçadamente ao assunto. Acho que ninguém viu e acho que talvez seja altura de começar a variar as minhas fontes de adrenalina.

Enfim, nada disto seria verdade, claro, se eu quisesse; excepto a parte do jantar e da senhora que partilha comigo o gosto dos contos do Salinger (que ambos preferimos ao Catcher in the Rye, é suficientemente raro para ser assinalado; e ambos gostamos de um livro de Albert Cohen chamado Le Livre de ma Mère, que de resto ela traduziu para português e eu vou ler essa tradução porque preciso desesperadamente de começar a acreditar nas traduções portuguesas).

Foi um jantar tão bom porque me fez sentir vivo. Não sei como explicar isto sem ser piegas ou parecer maricas, mas é isso. Foi um jantar bom. E partilhamos também uma veneração por um livro chamado A Curva do Rio, em português e A Bend in the River no original inglês, um livro sem o qual não se pode entender África, apesar de ser sobre o Congo, só (o rio é o Zaire e a cidade Kisangani, onde nunca estive. Mas estive em Kindu, mais para sul no mesmo rio).

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Depois fui a uma discoteca abominável. Fui não é adequado como verbo: entrei e saí aproximadamente um minuto depois. Há pessoas que gostam daquela mistura de muita gente, música muito alta, paredes negras e espelhos. Borges dizia que os espelhos e a fornicação deviam ser proibidos (porque aumentam o número de seres humanos), mas o que me ocorreu foi a discoteca toda branca onde há duzentos e cinquenta anos estive em Amsterdam e daí lembrei-me de Baruch, o velho Baruch: "nada em si mesmo é bom ou mau, tudo depende do que os homens fazem das coisas" (entre aspas mas a citação não é literal).

Nada em si mesmo é bom ou mau? Porra, quanto não pagaria eu para ver qualquer coisa boa naquele lugar?

"Não faço parte desse grupo" (dos que gostam de discotecas e boîtes)" dizia. E nem sequer tenho pena, não é? Não gosto. Já gostei. Enfim, não sei. Gostava duma discoteca que havia perto de Setúbal à qual ia de barco e que ardeu, era de madeira. Dessa sim, gostava. E daquela toda branca em Amsterdam. Nada em si mesmo é bom ou mau.

Quando era puto ia ao dois mil, claro. Já não sou, Allah uAqbar. Inch'Allah. Oxalá.

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Que mais? Leio Vila-Matas, outra vez (mas o livro é diferente, vá lá); folheio Le Clézio, um dos que trouxe de Genève. Penso no Vieux Dégueulasse de Reiser. Que pena não ser mais conhecido em Portugal, não é?  "Toutes des putains, sauf maman". Pelo menos poderia ser comparado a um gajo verdadeiramente nojento, se fosse apanhado a pôr os dedos no nariz ou a dar puns à mesa.

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Há pessoas que sabem o que querem e eu sinto-me verdadeiramente feliz por elas. Não faço parte desse grupo, mas já estou mais perto: sei o que não quero.

Ser infeliz, por exemplo. Ninguém quer, claro. Enfim, uma coisa sei que quero: uma casa para os meus livros. O primeiro livro do autor do Bend on the River chama-se Uma Casa para Mr Biswas. Muito esperou o senhor Biswas pela casa dele. Eu também posso esperar. Espero.

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Que mais? Uma coisa boa dos espelhos: os caleidoscópios. Uma coisa boa da fornicação: o amor, por breve e ténue que seja. Ou a esperança, vá. 

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