16.8.17

Escrever, sono

Apetece-me escrever, é mais do que apetecer, preciso, preciso de escrever o dia de ontem: passado na cama a queimar nojo e cansaço, o cansaço todo destas últimas quatro semanas e o nojo também, queimá-los deitado na cama a dormir como um atleta queima calorias a correr; escrever o reencontro com as ideias antigas que se transformaram em projectos recentes e futuros novos; escrever o nojo que tenho desta mistura de cobardia, maldade e estupidez, lido melhor com a maldade inteligente, a sacanice rasteira e rafeira é-me demasiado malcheirosa para que a possa manusear facilmente.

De maneira hoje passei o dia na biblioteca pública de Évora e depois fui beber uma caipirinha ao Páteo e daí vim jantar e nem a merda rafeira me estragou o dia, que vale o nojo? Nada, não vale sequer o  cansaço que provoca esquecê-lo. Espero pouco das pessoas, há muito que espero nada, não há mau cheiro que me fique nas narinas porque não lhes chega sequer.

E contar como hoje fui a um senhor monhé que repara telefones e em menos de um almoço no Cantinho da Beatriz (mas por muito mais caro) ele pôs-me o telefone a funcionar, uma protecção nova para o vidro "porque a outra está partida" e ainda ganhei uma capa para o telefone, tudo isto por menos de três vezes o preço dos almoços da C. e meu.

Continuo a ler a Hildegarde von Bingen. Já vou na quarta visão. A terceira era uma seca, saltei-a toda. Só falava de ventos e de vento estou eu farto e tinha também alguns argumentos lógicos incompreensíveis como por exemplo "o Sol ilumina as coisas altas, da cabeça até aos calcanhares; a Lua as coisas baixas, das sobrancelhas até aos tornozelos" (se não for sobrancelhas é a testa ou coisa que o valha) e eu percebo menos do que intuo o que a senhora quer dizer e passei para a quarta visão que tem a ver com estrelas e brasas.

A santa descreve as visões com o rigor de um pintor hiper-realista, mas o conteúdo tende mais para o surreal, mistura interessante e estimulante excepto quando fala de ventos, claro.

Preciso de escrever isto tudo e também o amor, a forma estranha e solavancada que ele tem de sedimentar, como se estivesse a subir uma escada e não uma rampa. Ontem foi feriado e claro que passar o dia na cama a dormir com a ajuda ocasional de uma miúda gira é mais fácil do que passá-lo sozinho, até o sono anda mais depressa e depois não sei como lá vai mais um degrau ou dois.

O bom é que a escada não tem fim.

A verdade está mais ou menos por aqui, à superfície, como se eu andasse por uma mina a céu aberto, é preciso encontrar o filão e só depois se fazem aqueles grandes círculos concêntricos pelos quais se desce sem nunca deixar de ver o céu. Encontrar uma palavra começada por V: Vértice. Vórtice. Voz. Vir. Vala. A vila devora-se a si própria.

Pensar na noite, na via láctea, nos milhares de constelações das quais desconheço o nome: não valem metade do que valem a meia dúzia que me são familiares, como Orion ou os Gémeos.

É isso: pensa na noite, no sono que te espera e protegerá, na inquietude: como atravessar uma noite a vau? Como nadar na corrente do tempo?

Como compreender a cabeça pequena da mesquinhez, as linhas tortuosas e ocas da estupidez, o buraco negro da maldade, que tudo absorve e um dia se dá a ver, patética e nua?

Prefiro isto: as veias irregulares de um pavimento sólido e híbrido, terra e pedras aquecidas pelo Sol. Não há lugar para serpentes, a menos que estejam sustentadas pela Lua. Serpentes inferiores.

Deixa-te levar pela corrente do sono: ela vai desaguar ao corpo que amas, ao corpo que te espera deitado numa pedra da calçada, a essa pele que o Sol antes de ti acariciou.

Pensa num templo do qual és guardião e hóspede. Pensa na luz que o ilumina. Pensa na luz.

Agora dorme: o sono é teu aliado. 

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