9.10.17

Um dia

"Não há panela sem tampa", dizia o sapo à princesa. Coitada não sabia o que é um sapo: animal gordo careca e escorregadio, esverdeado e esbugalhado, encalhado e encanado (de onde a expressão "encanar a perna à rã" - as pessoas confundem sapos e rãs com a maior das facilidades).

O sapo perdera o Norte havia de ali meia dúzia de dias. Talvez semanas ou meses. Talvez anos. Não sabia. Ignorava mesmo se era sapo, rã ou um animal desconhecido criado por Deus depois de ter bebido uma quantidade indeterminada (isto é, elevada) de medronho.

"Refiro-me à qualidade da noite". Andam anjos por aí. "À alternância: a uma lua cheia sucede-se um quarto minguante e a este uma lua nova. Segue-se-lhe um quarto crescente. A Lua disse-me um dia ao ouvido "estou farta de saltar de quarto para quarto. Quero morrer nova". Falo na primeira pessoa. Pouco interessa: a maioria das pessoas que nunca lerão isto já terá imaginado: a Lua não sabe do que fala. E muito menos a quem. Por detrás da Lua esconde-se uma cratera. Dentro desta, outra lua. Cratera. Lua. A vida é assim feita de uma sucessão de luas e de crateras sobre a qual saltam rãs e sapos, príncipes e princesas, nomes em cascatas sem fim.

Não importa. Imaginemos uma noite e nessa noite uma pele; nessa pele uma voz; nessa voz um medo, uma confusão, um apelo,  uma timidez. A voz - cada uma delas - é um mundo. O sapo deixa-se escorregar à superfície desse mundo, que lhe entra pelos póros, dedos e desejo e esquecimento e alegria em riste. Cada mundo tem muitos dedos, muitas vozes, uma sede, um olhar que se bebe a si próprio.

"Não gosto de espelhos", diz o sapo. "Olha melhor", diz o Príncipe. "Sou cego". "Melhor. Abençoados os olhos que não vêem, os ouvidos que não ouvem, as bocas que não falam. Deles não sairá asneira, por eles não entrará pecado".

Imagina um corpo. Cala-te. Faz amor com o silêncio como se fosse o futuro: lembra-te de tudo o que um dia te vai acontecer e para o que ainda não tens palavras.

É tudo. Vozes de burro não chegam ao céu. Só o silêncio lá chega: o céu é um vasto corpo silencioso no qual uma lua se queixa e uma voz chora, nostálgica e meiga, o que um dia será. 

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