9.11.17

Correspondência e diálogo

O quarto está gélido mas eu aconchego-me bem nos braços das memórias de ti, das noites frias que passámos juntos. Foram tantas. Vêm-me aos olhos as imagens dos teus cabelos, dos teus seios nas palmas das minhas mãos, do amor que fazíamos sem quase nos mexermos, enregelados e trémulos, apaixonados sem dúvidas. Ainda hoje me aqueces, tantos anos depois. Dir-me-ás que o passado nunca me interessou, nunca me aqueceu nem arrefeceu e eu responder-te-ei:
- Tu não és passado.

Ficamo-nos por aqui, uma chávena de chá fumegante à frente e relanças:
- Como vão essas dores no cotovelo [ou será no pé]?
- Mal, mas pouco me importam, os comprimidos não chegam mas em breve irei ao médico.
- Nunca soubeste tratar de ti - dir-me-ás. Mas o que queres dizer é:
- Nunca soubeste tratar de mim.
- Tens razão. Desculpa.
- Não tens de pedir desculpa. Estás pior do que eu.
- Tens razão.
- Eu sei.

As dores habituaram-se aos comprimidos como eu me habituei à tua ausência e agora me habituo ao frio como dantes me habituava à minha indiferença. Não há comprimidos para as dores do tempo, pois não?

É curiosa esta ideia de que os nossos presentes são como duas linhas de caminho de ferro, paralelas até ao infinito e por cima rola um comboio chamado memória que hoje me aquece esta noite gélida, esta melancolia límpida como um passado desperdiçado.

Pergunto-me quantos passados terás tu desperdiçado.
- Nenhum.
- Tens a certeza?
- Tenho. Sou demasiado jovem para ter passados.

Assim vou oscilando: entre as dores, o frio, a memória e a melancolia.
- Como fazes para não sucumbir?
-
- Adeus.
- Adeus.

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