24.2.18

Visões - a pradaria

Era uma pradaria como aquelas que se viam no Bonanza e no Rintintim e se calhar até na Lassie quando se era garoto.

Vinha a pé, aproximava-me de um grupo de cães selvagens que despedaçavam ferozmente uma presa. Estavam demasiado entretidos para me dar atenção. Ouvia-lhes de longe os ruídos das mandíbulas, os ossos da vítima que se separavam, quebravam, embatiam uns nos outros, os rosnados de ameaço que se enviavam mútua e quase mecanicamente.

Era o vento que me trazia o barulho; a matilha não me podia cheirar e nenhum deles levantava sequer a cabeça; a presa era demasiado apetecível, decerto. Ao longe viam-se os cumes de uma cadeia montanhosa, mas até lá tudo era plano. Estávamos em plena Primavera: as flores ondulavam como nos poemas dos Românticos, coitadas.

O meu sentido de olfacto é fraco: só quando estava muito perto do grupo comecei a cheirar o sangue e o pestilento odor da morte chegou a mim. Tentava lembrar-me do que me levara ali. Recordava vagamente uma discussão familiar cujos termos e facções me escapavam, um automóvel que parou para me recolher, um silêncio obstinado face às perguntas do condutor. Quando ele parou num cruzamento saí de carro num repente, inopidamente, sem querer; o homem não esperou por mim nem me procurou. Foi-se embora. Até aqui isto é tudo o que recordo.

Não sei há quanto tempo marcho na pradaria coberta de flores nem quando me começou a chegar o alegre ruído de uma dezena de mandíbulas que se repastavam numa animada refeição familiar (ou clânica, não percebo nada de cães selvagens).

O quadro é bonito, rústico, quando visto de longe: uma adolescente de vestido às flores pelos joelhos avança num campo coberto de flores que lhe chegam aos joelhos. Da distância vêm ruídos de ossos e ameaças animais, mas pouco se distingue à vista se não uma massa semelhante ao dorso de uma tartaruga que se anima, as escamas a levantarem-se e a baixarem-se como o mar de plástico no filme do Fellini.

Só quando estava muito perto, já quase em cima da borda exterior do círculo de caudas e patas traseiras vi que a presa era eu. Sou eu.

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